Infame

Homens, Mulheres e o Trabalho Doméstico: A Mulher Maravilha Não Existe (e o Super Homem Também Não)

"O que fazer? Desmistificar o instinto maternal e a visão da mulher como única cuidadora do lar pode ser um começo. Muitas empresas já começam a estender a licença-paternidade (que atualmente é de apenas cinco dias, de acordo com a lei), estimulando homens a ficar em casa com seus bebês. Um bom começo, mas o compartilhamento de tarefas tem de ir além dos cuidados básicos com os bebês".

Por Ana Marta Cattani |  05 de novembro de 2017

Não tenho saudades do chicotinho dourado e nem dos braceletes super fortes. O avião invisível foi abandonado no hangar e está tomado por teias de aranha. Bye-bye bustiê vermelho e dourado, uso calças jeans e camiseta básica. Após anos trabalhando doze horas por dia e tentando criar dois filhos, mudei de profissão, estou apreendendo a desacelerar e a me livrar do complexo de Mulher-Maravilha. Procuro lidar com o tempo de outra maneira. Quantas tarefas consigo realizar por minuto, por hora, por dia? Não sei. Não conto mais itens numa infindável to do list. Em minhas andanças por aí, observo, escuto e me deixo levar pelo acaso. Penso (logo existo?).

Outro dia, um bate-papo numa roda de mulheres me chamou atenção. “Nossa, seu marido troca as fraldas do bebê?” “Que homem!” “Puxa, e sabe cozinhar?” “Ah, que privilégio o seu!”. A sensação de incredulidade me fez cogitar se não teria caído em uma fenda do espaço-tempo e voltado ao passado. Em pleno século XXI, ainda é privilegiada a mulher cujo marido auxilia nas tarefas domésticas? Pasmem, enquanto a mulher só cumpre a sua obrigação-vocação-maternal, a participação masculina nos cuidados com o lar ou com os filhos é vista como ato extraordinário.

Eis o homem moderno: aquele que ajuda a mulher em tarefas domésticas. Mas ajudar é bem diferente de compartilhar. Li numa pesquisa recente, realizada em oito países e publicada pela “The Economist”[1], que existe uma diferença de percepção entre os parceiros no que se refere à participação do outro na vida doméstica. Perguntadas sobre quem é o principal responsável pelas tarefas domésticas e cuidados com as crianças, 43% das mulheres disseram ser elas mesmas, enquanto apenas 22% de seus parceiros confirmaram esse fato. Ainda, 46% dos homens acreditam que as tarefas são divididas igualmente, enquanto somente 32% das mulheres disseram que a divisão de tarefas é igualitária.

A pesquisa não demonstra de quem é a percepção correta, mas torna claro que parceiros tem percepções bem distintas a respeito de uma mesma realidade. Alguém já disse que homens são de Marte e mulheres são de Vênus, mas me parece que a diferença entre ajuda e compartilhamento vai muito além da origem planetária dos espécimes.

Minha amiga Marina, por exemplo, trabalha das 8:00 às 17:00h, e no intervalo do serviço passa no supermercado, faz as compras e mesmo chegando tarde em casa ainda prepara o jantar, enquanto o Fred também chega tarde e já vai perguntando “o que temos pra jantar hoje?”. Sim, Fred é um homem moderno e Marina é uma mulher privilegiada, por isso, quando a Marina está muito cansada ele a convida para jantar fora e, se ela pedir, ele até faz um jantarzinho especial para os dois.

O lar é um microcosmo, que ainda permanece apartado da rotina masculina. A iniciativa é da mulher na maioria das vezes, cabendo a ela pedir ajuda ao companheiro. Mas a ajuda que a Marina realmente espera, o tal compartilhamento, não precisa de pedido, ao contrário, pressupõe que cada um esteja à frente da tarefa, com liberdade de ação e decisão. Duda, outra amiga minha, no meio de uma discussão com o marido justamente sobre o tal compartilhamento de tarefas, ouviu dele a frase: “Pôxa, mas eu não sou o Super-Homem, não dou conta de tudo!”

Isso mesmo, eles não são Super-Homem, nós não somos Mulher-Maravilha. O que fazer? Desmistificar o instinto maternal e a visão da mulher como única cuidadora do lar pode ser um começo. Muitas empresas já começam a estender a licença-paternidade (que atualmente é de apenas cinco dias, de acordo com a lei), estimulando homens a ficar em casa com seus bebês. Um bom começo, mas o compartilhamento de tarefas tem de ir além dos cuidados básicos com os bebês.

A poeta russa Marina Tsvetaieva (1892-1941) escreveu com a sinceridade de que só os poetas são capazes: é mais fácil ficar presa dentro de uma jaula com um leão do que num quarto com um bebê. Tsvetaieva não contava com a ajuda de programas de TV, Google ou tutoriais no Youtube. Hoje em dia, felizmente, temos à disposição um arsenal de informação e milhões de especialistas que nos ensinam tudo sobre tudo. Aprendemos – homens e mulheres – a cuidar de crianças, a cozinhar, a costurar e seguimos aprendendo. Ambos são igualmente capazes de executar as tarefas da vida familiar (as mamadeiras e o congelamento do leite materno são ótimas opções para os pais, embora não substituam a amamentação no peito).

Homens e mulheres se dedicam à carreira e trabalham fora. Precisam, juntos, descortinar um novo olhar sobre o universo doméstico. Em um futuro não muito distante, assim espero, homens empoderados (uso propositadamente o termo que serve para designar as conquistas femininas no campo social e político) assumirão a execução de funções domésticas; e as mulheres não se preocuparão em impor ou ensinar aos homens a sua maneira de cuidar, porque os homens afinal estarão confortáveis em seu próprio papel de cuidadores. Sem super-heróis ou super-heroínas, todos apenas humanos.

[1] Para mais detalhes, ver: Who does the most in your household? https://www.economist.com/blogs/graphicdetail/2017/10/perception-gap-quiz

Ana Marta Cattani

Ana Marta Cattani

Ana Marta Cattani adora Snoopy, Borges, Drummond, mousse de chocolate e cheirinho de lavanda, necessariamente nessa ordem. É paulistana, mãe, esposa, advogada e apaixonada por escrever, não necessariamente nessa ordem.