Toda grande cidade, em meio a suas contradições velozes, suas convulsões impessoais, e suas caóticas indiferenças, é também capaz de guardar segredos e mistérios que nos reconectam com o essencial que há em nós: a nossa história. São Paulo não foge à regra. Como todo gigante, a desvairada assusta à primeira vista. Por outro lado, revela a olhos e coração abertos, portais de comunicação com outros planos de dimensões espaciais e temporais alternativas.
Esses portais podem ser bairros ou lares. Podem ser pequenos córregos. Ou sons, perfumes, objetos, imagens, ou palavras. Fato é que nos conduzem ao campo das lembranças. Do vapor quentinho do bolo de fubá recém tirado do forno, da impermanência dos brinquedos improvisados com qualquer sucata para as brincadeiras de rua, do cheirinho de goiaba dos quintais antigos, do sonzinho chiado da música tocando na estação mal sintonizada do rádio da cozinha. Lembranças que permitem o regresso aos braços das avós, que nos religam à nossa ancestralidade. Essa ligação é um ativo essencial da memória que conforma a cultura e a identidade de um povo, e vem sendo apagada pelas sociabilidades modernas predominantes, sobretudo nos espaços urbanos.
A ciência, a tecnologia, e a modernidade, são categorias convencionalmente relacionadas a noções de desenvolvimento, progresso, e civilização, e defendidas majoritariamente como algo positivo. Ao passo em que, por um viés pejorativo, a sabedoria e os conhecimentos ancestrais são associados à ideia de atraso, ignorância, e selvageria.
Não se trata de nostalgia, mas de posicionamento político. Eu prefiro esquentar os alimentos no fogo. Nem tenho micro-ondas. Gosto de café coado (e não uso coador de papel, para diminuir a produção de resíduos). Não vivo na frequência do medo e da desconfiança. Aprecio moradas com quintais e jardins, em que as portas ficam no nível da rua. E francamente, me sinto agredida pelos grandes empreendimentos que levantam prédios com mais de dez andares, derrubando a qualquer custo casinhas antigas, e reforçando sensivelmente o apagamento das memórias das pessoas e das cidades. Por isso, partilhar um pôr do sol, em São Paulo, da frente da casa de amigos que moram em junto a uma praça pitoresca, que vivem com as portas de casa abertas, e que acompanham o crescimento de cada serzinho vegetal ou animal com quem coabitam, é desfrutar de um privilégio muito singular de cruzar um desses portais.
Não é todo mundo que valoriza isso. Muita gente nem se dá conta de como a sociedade foi naturalizando o consumo monetarizado de coisas industrializadas, de modo associado ao descarte de materiais orgânicos disponíveis a todos. Passou a ser comum o uso de luz elétrica no lugar da luz do sol, a substituição do vento pelo ar condicionado, passou a ser corriqueira a desconsideração do uso ritual de elementos naturais sagrados, e exótica a realização de coisas com os próprios pés e mãos, sempre que uma máquina possa fazê-las em seu lugar.
Pertenço a uma geração na qual a maioria é filha ou neta de pessoas que nunca frequentaram universidade, que não estudaram tudo o que hoje se preconiza, ou que nem estudaram nada. E que de modo aparentemente contraditório, sabiam tudo. Um tudo super importante que foi sendo, no entanto, deixado de ensinar e aprender, por uma opressão social que defende a supremacia do conhecimento científico em relação à sabedoria tradicional.
Me lembro de cada plantinha que eu pegava do quintal da vovó, sob sua prescrição, para curar isso ou aquilo, me lembro das sessões em benzedeiras, das rezas, e das longas histórias contadas sobre seu fulano ou dona beltrana, para que compreendêssemos de forma afetiva as coisas importantes da vida. Essas práticas foram sendo, paulatinamente, classificadas como símbolos de atraso, com base numa lógica que concebe o tempo de forma linear, segundo a qual o passado não tem serventia, pois precisa ser superado para que se alcance o progresso no futuro. O que penso disso, sinceramente? Sinto uma tristeza quando estou numa comunidade indígena ou tradicional e percebo que ando na mata com uma desenvoltura tão inferior à de um homem de mais de 70 anos, ou que demoro o dobro do tempo que uma criança de 9 anos leva para descamar um peixe ou descascar uma macaxeira. Porque no fim, a gente vai desaprendendo o que é essencial, e vai deixando de andar descalça, e vai perdendo o tato que nos permite sentir as diferentes texturas da vida…
É claro que os conhecimentos tradicionais estão muito, mas muito, além de caminhar na mata ou descascar mandioca. As pessoas do campo e da floresta, como me disse certa vez um xamã, têm as suas próprias ciências. Elas têm sua própria língua, sua própria geografia, sua própria engenharia, sua própria medicina, sua própria botânica, química, etc e etc… Essas ciências não são melhores nem piores. São alternativas àquilo que hoje predomina. E a sociedade ocidental moderna, simplesmente as despreza. Nas grandes cidades, a sabedoria tradicional foi sendo combatida, e consequentemente, as singelas noções desses conhecimentos a que tivemos acesso em algum momento, foram sendo apagadas do nosso sentido de aprendizado. As práticas tradicionais foram sendo substituídas, em função da imposição de uma falsa necessidade de racionalizar tudo, de comprovar tudo, de modernizar tudo, de importar tudo, de comercializar tudo, de copiar tudo, de padronizar tudo. A promoção da ciência ao patamar de exclusiva forma de conhecimento válido, se consolidou com o apoio de fatores econômicos, políticos, e epistemológicos. Isso tudo desencadeou um processo que acarreta, não só o rompimento do elo individual de cada sujeito com sua ancestralidade, mas um apagamento da nossa memória cultural coletiva e social.
Além disso, as narrativas monoculturais hegemônicas, decorrentes de nosso processo de colonização, se sobrepuseram de modo violento às especificidades dos nossos diferentes modos de vida e organização comunitária. Com isso, nossas narrativas foram sendo diminuídas, e nossa sociedade foi abrindo mão de seus próprios sentidos de expressão. As histórias de seres encantados europeus são tratadas no campo da mitologia, mas aqui, são reduzidas a meras lendas ou crendices. Pouca gente hoje fala sobre os encantos do boto, as peripécias do saci, ou as aparições encantadas do caipora, do boitará, ou do curupira. Assim, a gente vai perdendo os traços que diferenciam os nossos modos de ver e explicar o mundo, e as culturas de nossa sociedade ficam desqualificadas sob a classificação de folclore. A colonialidade e a modernidade roubaram nossa história e nossas identidades.
A urbanização contribuiu de maneira significativa para intensificar essa homogeneização sociocultural. Viver em grandes cidades hoje, na maior parte das situações, é estar sob submissão mais intensa à supressão de elementos que podem reconduzir ao sentido de identidade cultural. E se não atendermos à imprescindibilidade do resgate e transmissão desses saberes, as gerações futuras serão completamente privadas do acesso a essa memória cultural, que é a essência para a significação dos sentidos que nos identificam enquanto povos.
A gente precisa se dar conta disso. A história não têm sentido ou direção únicos ou previstos. O sentido e a direção do tempo não caminham rumo ao progresso e ao desenvolvimento, que a classe política, econômica, e socialmente dominante quer nos fazer acreditar paradisíacos. Afinal, não podemos estar em lugar ou em tempo algum, enquanto não soubermos sequer o que realmente somos. Por isso, nosso grande processo de transformação emancipatória começa por uma revolução cultural. Se a cidade grande vai privando nossos pés do direito a pisar na terra, precisamos estar dispostos a encontrar e cruzar esses portais. E quem sabe, ao redimensionar o espaço-tempo urbano, sejamos capazes de resgatar nossa memória e reconstituir a nossa identidade.