Ter sido monitor da 69ª reunião da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) aqui em Belo Horizonte, minha cidade, me trouxe várias experiências. E algumas delas não são lá muito próximas do mundo acadêmico formal, mas trazem reflexões que deveriam nos situar em relação ao cotidiano. Em relação à nossa relação com o mundo e com as outras pessoas. A ciência dura é muito chata, quadrada e padrão, tal qual o personagem Eugene Bosc, o professor pé no saco do seriado Merlí.
E, vamos combinar, de professores e professoras enfadonhas e desinteressantes estamos rodeados. Não falo no espaço acadêmico (apenas), mas em todo o contexto de produção de conhecimento há uma autoridade, um lugar de fala, que desperta certo nojo em mim, certo distanciamento, certo asco. Não seria nojo a palavra, seria asco. Asco dá pra chegar perto, nojo não. Tenho nojo de barata e de rato, não consigo chegar perto desses bichos; asco eu tenho quando vejo algumas pessoas arrogantes e hipócritas — e aí muitas vezes você tem que fazer uma social, né… Mas do que estou falando? Deixa eu voltar…
Sim, produção de conhecimento como um lugar, quiçá, chato e enfadonho. Mas quando eu estou falando isso não estou criticando o evento da SBPC tampouco a Ciência em si, mas a forma como produzimos e transmitimos conhecimento. E o mais interessante nessa história toda é o quanto a nós, pessoas, é vetada essa produção de saber quando queremos, quando desejamos.
Vou contar, para exemplificar, o caso que me aconteceu numa das visitas que orientei no evento. Fui monitor da SBPC Jovem, com o delicioso e árduo trabalho de acompanhar crianças e adolescentes de escolas de Belo Horizonte e Região Metropolitana que haviam agendado visitar o espaço montado na UFMG (Campus Pampulha) para recepcionar esse grande evento (cara, fiquei boquiaberto com o evento; é, realmente, uma surpresa e uma experiência única). Uma breve explicação: A SBPC é uma entidade que reúne uma cacetada de cientistas do país inteiro e todo ano faz sua reunião científica em alguma instituição federal de ensino, geralmente universidades federais. Tem uma pá de coisa. Uma tenda de 10 mil m² com vários expositores, palestras, apresentações culturais, além da reunião da diretoria da associação. A UFMG sediou o encontro de 2017 (que ocorreu em julho) e Alagoas sediará o próximo, de 2018. Dentro da SBPC temos a SBPC Jovem, que visa justamente estimular a galera mais nova no mundo da ciência. Uma tenda especial foi montada para essa galera, com 2 mil m², e esse lugar recebia a maior parte das demandas das escolas que agendavam visita. Eventualmente, quando a escola levava muita gente — como no caso que vou relatar — , dividíamos o grupo em dois ou três e promovíamos visitas paralelas: um ia para a Tenda Jovem, outro para a tenda principal e outro para algum outro lugar da UFMG que estivesse disponível para visitas, como o Museu de Ciências Morfológicas.
Na companhia de mais sete monitores, fizemos a visita com uma escola que havia agendado a participação de 250 (!!) estudantes, todos de ensino fundamental de uma escola de BH, que deviam ter no máximo 12 anos. Fiquei com parte do grupo que visitou a EXPO TEC, a tenda principal que mencionei acima. Durante a visita, uma garota (negra, de traços indígenas e, de todos/as os/as meninos/as, uma das mais interessadas na visita), fez menção de pegar um folder, um cartaz, sei lá o que era. Ela estava serenamente indo pegar o papel depois de conversar comigo e me perguntar se podia. Prontamente disse que “sim, pode pegar sim, pode levar”, porque todo o material disponível no estande onde estávamos era para isso mesmo: ser pego e levado para casa, sem parcimônia. Ao se dirigir para o lugar onde estavam os materiais, uma das professoras encara a estudante e fala: “pode devolver! Pode devolver!”. Segundos de perplexidade se estabeleceram na minha mente e, pelo semblante que a garota emanou, ela também ficara confusa. E de confusa, passou a frustrada.
Se a professora tivesse ficado só aí, eu já teria achado grave. Mas, como se diz, existe uma necessidade do ser humano de que a emenda fique pior que o soneto. A docente então emite a seguinte frase:
— Tenho certeza de que você não vai ler nada disso aí quando chegar em casa. Pra quê pegar, cê vai tudo jogar fora… Cê vai jogar tudo fora, não vai ler mesmo. Tenho certeza.
(Tenho certeza de que eu, Bruno, queria esganar aquela pseudoeducadora que disse isso. Mas, Bruno, respira…)
Olhei a carinha desolada da pequena e, meio que numa subversão à autoridade da profe, sussurrei a ela quando a mestra saiu de perto: “pode deixar, eu pego um pra você”. Peguei, entreguei e ela me agradeceu. Não era nada de mais, era o folder divulgando o trabalho científico dentre vários tantos trabalhos interessantíssimos que havia na tenda principal da SBPC. Mas, cara, a professora teve a pachorra de vetar o acesso da menina ao material — que era para ser distribuído— porque ela achou (melhor, “teve certeza”) que o papel que a guria pegou seria desprezado, jogado no lixo.
FODA-SE se a garota depois, ao perceber a montoeira de papel acumulada na mão, na pasta ou na mochila, jogasse fora o material. O que importa aqui é a subjetividade do ato, a vontade, o interesse da menina por aquilo que lhe é apresentado, por uma novidade que ela quer ver, tocar — e que é imbecilmente tolhida pela arrogância e petulância de uma pessoa com diploma de professora. Uma docente que, muito por conta da formação que teve (não é culpa só dela, viu, gente? Vamos parar de individualizar o rolê) , não percebeu que a garota queria menos um papel informativo, mas mais uma recordação daquele momento. Dali a cinco, dez anos, ela poderia encontrar o papel e dizer “puxa vida, eu tava naquela feira que rolou naquela visita que fiz com a escola naquele dia… foi massa”, ou dizer “poxa, que merda que foi essa feira que eu fiz”. Não temos que nos haver com o juízo da garotinha, mas sim nos preocuparmos com sua subjetividade em construção.
Temos que nos haver exatamente com essa coisa de formar ou deformar a constituição enquanto sujeitos dessa galera que não é mais tão criança, mas não chegou à adolescência plena. Eu fiquei realmente bolado e lembrando das conversas que tenho com um grande amigo meu, professor da rede pública, que sempre pauta essa questão do tratoramento da subjetividade da galera, da falta de cumplicidade, sensibilidade e amor (sim, amor) aos meninos e meninas.
Aquela professora teve ZERO consideração pela sua discente. E mesmo que não fosse sua aluna, acho deveras reprovável uma atitude tão “eu sei que você não vai ser nada na vida mesmo”, entende? Porque se a gente acaba querendo pautar a questão da transformação social dizendo que é a Educação o berço solene de tal processo, não vai ser com essa estirpe de “educadoras” que vamos fazer uma geração que consegue acreditar em si mesma.
O mundo da escola está cheio de professoras à la Eugene Bosc, do tipo exato como o dessa “educadora” do caso que contei, que com tanta empáfia e arrogância determinam a trajetória de seus discentes sem sequer compreendê-los. Recomendo assistir à série Merlí, que está na Netflix, para compreender o que quero dizer. E, caso você seja um docente que tem essa prática, te dou um puxão de orelha e te convido para o Cantinho da Reflexão, mas sem ter que ajoelhar no milho – aí já é vandalismo.