Infame

Meu Passado Existiu? Diante das Incertezas das Coisas

"Nossa noção (ocidental) de uma linha do tempo seguindo um sentido horizontal - com passado, presente e futuro em pontos distintos e separados - já foi questionada e revirada pelo avesso pela psicanálise. Freud mostrou que o inconsciente não segue um modelo linear, ele é um “tempo de mistura de tempos”, e o passado está a todo momento sendo reconfigurado por situações do presente".

Por Bruno Henrique M.S.  |  01 de novembro de 2017

Era uma barraca azul. Possuía características de barraca, feita de lona e presa por cordas como qualquer outra. Mas suas medidas – acredito – eram desproporcionais; ela ocupava quase toda a área do nosso quintal. E esse não era o fato intrigante. No fim da infância, deparei-me com a dúvida: essa barraca realmente existiu?

Nossa noção (ocidental) de uma linha do tempo seguindo um sentido horizontal – com passado, presente e futuro em pontos distintos e separados – já foi questionada e revirada pelo avesso pela psicanálise. Freud mostrou que o inconsciente não segue um modelo linear, ele é um “tempo de mistura de tempos”, e o passado está a todo momento sendo reconfigurado por situações do presente. Algo que parecia não existir no passado, pode emergir diante de uma situação do presente; o momento que não foi percebido pode um dia sê-lo.

Lembro-me bem de todos os detalhes, havia muitos. O resto de dia num fiapo de claridade, meus pés descalços, espalhei pelos dois ambientes da barraca tudo aquilo que eu nomeava brinquedos: carrinhos, colheres, pedaços de madeira e coisas achadas. Adorava achar coisas. Talvez um dos prazeres da barraca era esse, ser o meu estoque mágico. Anoitecia, e eu não queria sair – em pouco tempo minha mãe me chamaria para o banho. Estava com medo de amanhã a lona não mais existir. Ainda guardo a sensação eufórica daquele dia.

Os aborígenes possuem também uma concepção não linear do tempo, mais enigmática que a psicanálise. Conhecido como Tempo do Sonho, essa ideia explica que o passado não deixa de existir. Um fato do passado volta a existir constantemente e pode ser modificado nessas novas existências. A artista Marina Abramovic viveu alguns meses no deserto australiano e expôs o contato com essa cultura no livro Pelas Paredes: ” Nós aprendemos o que era o Tempo do Sonho, o conceito dos aborígenes sobre a Criação, que existe no passado, no presente e no futuro, tudo ao mesmo tempo.” Ela narra também alguns fatos curiosos ocorridos durante esse período, como o dia que sonhou com o Papa sendo baleado, e logo depois teve a notícia da ocorrência do fato.

Eu devia ter cinco anos ou quase.  O meu tio, que era nosso vizinho, possuía um disco do Dire Straits, uma guitarra flutuando no céu azul. Sultans of Swing tornou-se uma das minhas marcas mais vivas e reais dessa época. Já a barraca azul, apesar da vivacidade, ainda é apenas incógnita. Pode ser uma invenção. Ninguém está imune de ser um autor de autoficção. Mas por que uma das mais fortes memórias da minha infância pode ter sido uma mentira, e por que tantos detalhes?

É certo que eu poderia ter concluído essa dúvida com um ato simples, perguntando aos meus pais se algum dia compraram uma barraca azul. Mas talvez essa pergunta nunca ocorra. Há algo de mágico na incerteza das coisas – e algo de belo também.

Inventamos a todo momento. Pequenos enganos, achismos, sinais errados – “acho que vi”, “talvez fosse” – invenções que se acumulam como fuligem ao longo dos dias. Ao longo de anos. E que não ficam, porém, confinadas numa vitrine antirruído. Elas persistem, exigindo respostas, sensações e sentimentos.

Aceitamos que a memória pode ser deserto dúbio, cheio de enganos, e que os fatos do passado estão sujeitos às oscilações dessas areias. Mas, e os fatos do presente – tenho consciência de quantos personagens e situações inventei hoje?

 

Bruno Henrique M.S.

Bruno Henrique M.S.

Bruno Henrique M.S. trabalha com comunicação, mas sente-se vivo nos cômodos da arte. Tem dificuldade para preencher mini currículos. Prefere inventá-los.