59 segundos para a chegada do vagão, apontava o luminoso da estação de metrô. Ela olhou para o sinal no chão e leu a advertência: deixe esta área livre para o desembarque. Sabia que em breve um monte de desconhecidos seria vomitado para fora daquela caixa de metal peregrinadora de túneis subterrâneos, mas não tão subterrâneos quanto os túneis dos seus incômodos. 48 segundos. Por algum motivo, lembrou do seu pai, embora ele não fosse um homem de desembarques e tivesse aguentado pacientemente uns 50 anos de tudo: de casamento, de emprego, de amizades e de fé. Ela, pelo contrário, profissionalizou-se em desembarcar, prova de que o gosto por desistir das coisas não se transmite por vias genéticas. 37 segundos. Não via seu pai havia 7 anos, tendo desembarcado dele assim que a mãe morreu. Seu maior namoro durara 9 meses. Sua amizade mais antiga só tinha 2 anos e já fedia de tão madura, implorando para ser ceifada. 29 segundos. Encarou os trilhos com curiosidade. Podia jurar que eles entoavam uma música convidativa do tipo que só é cantada por sereias sedutoras. Desejou saber se um atropelamento de metrô chegava a doer ou se, de tão rápido, seria indolor, e em seguida pensou que, se fosse mesmo atropelada, quem mais sentiria a sua falta seria o Beto, seu cachorro, adquirido numa feira de vira-latas havia 3 meses. Achou pouco: morrer para deixar saudades só no Beto? Não, muito pouco. Então quis reagir, abalada pela sensação de que, ao morrer ali nos trilhos, morreria em sigilo, como uma versão espiritual dos indigentes de carne e osso. Levantou a cabeça e viu um senhor obstruindo a área de desembarque. Gritou com ele e o tirou dali à força. De braços abertos, passou a proteger aquele território quadrado marcado no chão da presença de intrusos, abrindo caminho ao desembarque dos passageiros que logo sairiam do vagão. 18 segundos. Começou a ouvir o barulho daquele veículo cheio de vidas inéditas, todas elas potencialmente embarcáveis. Ansiedade pingou do sovaco e escorreu pela sua testa. Já sentia o vento produzido pelo deslocamento de ar, enquanto o freio se esgoelava para parar uma máquina tão pesada. 6 segundos. De longe, fez contato visual com uma velhinha parada na porta do vagão. Seus olhos e pescoços se acompanharam pelos metros que restavam até que o carro estacionasse. Ficaram frente à frente, separadas pelo vidro. A porta se abriu e os passageiros saíram com pressa. O entra e sai deu origem a uma gritaria, e a gritaria deu origem a uma briga. Na confusão, ela puxou a senhorinha para protegê-la. De mãos dadas, encararam-se de novo. Pensaram nos filmes que veriam juntas e nos desabafos que fariam entre si. Quiseram embarcar uma na outra, mas antes que o fizessem sobrou um soco de raspão no rosto da velha, que quase caiu. Assustadas, as duas desviaram seus olhares em busca do agressor. Em seguida, restabelecidas do susto, olharam-se pela terceira vez. A senhora sorriu. A outra, porém, mesmo não tendo ido embora, já não estava mais ali. Desembarcara coisa de 3 ou 4 segundos antes. Olhava para a velha com um desdém modificado em laboratório, menos cruel que o normal e muito semelhante à frieza, como se não tivesse depositado na idosa toda a esperança reconciliar-se com a humanidade que sentira ao longo do último meio minuto. Encarou-a mais um pouco até cansar, quando enfim terminou de olhar, deu as costas e entrou no vagão. A senhora ficou sozinha no meio do caminho, atrapalhando embarques e desembarques, dedicando-se a amaldiçoar o poder de distração gerado pelas pequenas confusões e empurra-empurras. Apesar da idade avançada, ainda houve espaço para um novo aprendizado: há trens que se perdem por uma questão de detalhes, pelo simples raspão de coisas irrelevantes arremessadas contra nós. Poeira cósmica.