Infame

Você Não Está Sozinho Nem Quando Se Masturba

"Mas é duro acender as luzes do quarto. Narcisistas que somos, detestamos admitir nossa porosidade e enxergar que nosso desejo, tão identitário, contém ingredientes que sequer conhecemos. Mas o indivíduo esterilizado, protegido de calor e luz e embalado a vácuo é uma ilusão. Somos produzidos na e pela sociedade".

Por Letícia Bahia |  28 de outubro de 2017

Apagam-se as luzes, vai começar o espetáculo! Ele já está em cima dela, a camisa pendurada no abajur. Tudo parece especial, único, ímpar. Ela pensa que não existe mais ninguém no mundo. Ele pensa que ela é toda dele, e enfia a mão por dentro da calça dela, todo carne, todo corpo. Ela retorce os quadris e o abraça com as pernas, entregue, inteira, intensa. Até que ouve um clique.

O abajur se acende e na poltrona do quarto está a sexóloga da palestra que ela assistira na semana anterior: “calcinha bege, querida?!”. Seu corpo se contrai sutilmente, e ela sabe que precisa fazer-se relaxar. Ela sabe que ele não ouve a sexóloga, mas sabe também que seu corpo pode denunciá-la. Ele segue alheio à calcinha bege. Não é que ele não tenha percebido alguma resistência. Mas quando a luz se acendeu, quem estava na poltrona dele era aquela puta da adolescência. Não a primeira – a de quando ele broxou – mas a terceira ou a quarta. Ela dançava para ele proibindo-o de tirar sua roupa, e ele sabia que isso significava que ele deveria arrancar sua calcinha – de cuja cor ele não se recordava.

Ela já estava sem calcinha quando viu nos olhos dele o galã da novela, e então se sentiu amada. O amor foi se espalhando como fumaça quente, e ela imaginou filhos, casa, flores, anel, e tudo que ela imaginava aparecia no quarto, e o quarto virava um depósito das quinquilharias dos sonhos dela. Virou a cabeça e… susto! Sua mãe também estava no quarto, e ela lhe dizia que os homens não prestam e que o amor dói, e então a fumaça quente começou a ficar tóxica.

Ela parecia menos entregue, e ele tinha aprendido nos filmes que por isso deveria possuí-la mais, mais, mais. Mas seus olhos miraram o quadro em cima da cama, e de dentro dele quem lhe falava era o professor de Educação Física da segunda série: “só isso?! Moleque frouxo!”. Desviou os olhos somente para encontrar o menino com quem ele brincava de médico na sexta série. Fazia anos que não o via, como estava bonito! O menino o estava ajudando com seu pênis, que havia ficado meio mole por causa do professor, mas na sequência quem entrou no quarto foi o Papa, e o Papa não precisou dizer nada, porque dizia com os olhos.

Eles pensaram que estavam sozinhos, e quando acenderam as luzes descobriram toneladas de pessoas comandando seus corpos. Algumas eles nem sabiam quem eram; outras, tinham visto nos livros de História do colegial. Eles descobriram que o sexo deles é político. Com um fundinho de natureza, vá lá. Mas diante do monstruoso aparato social que circunda o sexo dos humanos, muito pouco do nosso sexo pode realmente ser chamado de “o nosso sexo”. Quase tudo que acontece, dentro e fora de nós, quando transamos é produção cultural, social, histórica. E o sexo do nosso tempo é um sexo que dói nas mulheres.

“Ontem eu estava tranquila, mas ele insistiu, então rolou”. Na época em que trabalhei como psicóloga clínica, ouvi dezenas de variações dessa frase. Sem necessariamente perceberem, essas mulheres estavam me contando que aprenderam que seu desejo é menos importante do que o desejo de seus parceiros, o que é perfeitamente condizente com o espaço que o desejo masculino ocupa em nossa cultura – há um mercado enorme voltado para os homens -, tão mais relevante do que os espaços e conversas onde o tema é o tesão da mulher. Isso, no entanto, não quer dizer que a cultura ensine o sexo apenas aos homens. Antes fosse. Ao eleger o desejo masculino como protagonista, o que a cultura faz é ensinar o sexo de maneiras distintas para homens e mulheres. E nós aprendemos a fingir, a sentir uma dorzinha e relevar, a trepar quando o parceiro quer. Se não estivermos disponíveis – ensina o mundo – ele vai ficar bravo e pode ir embora, e nós não fomos treinadas para sermos independentes.

É fato que a prática sexual expressa a cultura de seu tempo. Quando o Feminismo resolve problematizar algumas dessas práticas, logo surge a patrulha de combate às imaginárias feminazi pra dizer que estamos policiando o coito alheio. Não estamos.

O exercício do prazer é privado, mas sua construção é histórica. Ninguém pode lhe tirar o direito de gozar como você bem entende (só a lei, claro), mas isso não significa deixar de lado uma leitura do sexo como expressão social. “Ele/ela gosta/escolheu assim” não dá conta de explicar o sexo quando a gente tira a lupa e constata os padrões que encontramos em cada gênero, faixa etária, orientação sexual, etc. Repito que não queremos arrombar quartos de motéis para fiscalizar como as pessoas transam, mas buscar uma compreensão mais profunda sobre como se construiu esse gostar/querer e o que ele diz da sociedade que o acolhe – porque isso pode, por exemplo, nos dar pistas preciosas para enfrentar problemas como o número epidêmico de estupros no Brasil.

Mas é duro acender as luzes do quarto. Narcisistas que somos, detestamos admitir nossa porosidade e enxergar que nosso desejo, tão identitário, contém ingredientes que sequer conhecemos. Mas o indivíduo esterilizado, protegido de calor e luz e embalado a vácuo é uma ilusão. Somos produzidos na e pela sociedade.

Tomemos o exemplo simples de uma calça jeans. “É bonita, vou comprá-la”, você pensa, confiante de que aquele gosto e aquela escolha dizem muito de você. É a sua escolha. É ruim admitir que esse desejo foi, em grande medida, produzido por revistas, filmes e novelas que nos ensinaram que usar calça jeans é legal. Mas se essa influência não fosse enorme a Publicidade não existiria.

Eu nunca teria comprado uma calça jeans se, muitos anos antes de eu nascer, o cinema americano não tivesse mostrado Marlon Brando, James Dean e a turma toda dos descolados vestindo calça jeans. Historicamente, essa peça de roupa de tecido grosso e resistente era vestimenta de trabalhador rural (meu pai até hoje chama calça jeans de calça rancheira). Esse significado precisou ser transformado para que a gente passasse a desejá-las.

Apontar esse aspecto político das escolhas não significa, no entanto e absolutamente, que devamos tentar impedir as escolhas dos outros quando elas nos parecem problemáticas. Dentro dos limites da lei e da ética tudo é permitido, e problematizar não é o mesmo que censurar. Que as pessoas transem como queiram transar. Mas se nós reproduzimos e reafirmamos valores através do sexo (e de tudo), que a gente se pergunte se são valores que a gente realmente quer perpetuar.

Assim, por exemplo, é importante olhar para a poronagrafia procurando compreender que formas de ser homem e de ser mulher ela vende. É inadmissível – e não é Feminismo – criticar a mulher que gosta de ser amarrada e chamada de vagabunda (se ela gosta, torço pra que encontre parceiros ou parceiras que gostem também), mas é interessante discutir por quê fantasias de submissão são tão mais comuns nas mulheres do que nos homens e o que isso diz sobre nós todos. É uma hipótese muito razoável, por exemplo, colocar a pornografia como fornecedora de material cultural para a violência de gênero, já que ela é a mais notória escola de sexo para os meninos.

Mas se a luz acesa nos mostra o que não queremos enxergar, ela é só o princípio de uma metamorfose dolorosa.

Muitas mulheres estão se dando conta de que entregar-se ao sexo mesmo sem muita vontade não é natural, é construção social. Estas mulheres olham para trás e passam a ver relações sexuais abusivas – embora consensuais – onde antes viam transas normais. O abusador ali não é o parceiro, mas uma cultura que ensinou-lhes que é assim que as coisas funcionam, que esse é o normal. É muito doloroso, porque você precisa se reconhecer como seu próprio algoz. Você não queria sexo, mas assim mesmo você consentiu. Não se pode simplesmente culpar a cultura e isentar completamente o indivíduo, porque se a gente faz isso, se a gente mata o indivíduo, a gente mata também a possibilidade de ele sair dessa.

É muito, muito difícil sair dessa. Vejam que sinuca de bico: de um lado, mulheres que não querem mais seguir o velho modelo se-arrume-que-eu-vou-lhe-usar. Elas só sabem como querem não fazer, mas estão diante do desafio de construir um modelo novo. A ameaça da solidão, que já nos atrai para dentro da fôrma da mulher ideal – a “bela, recatada  e do lar” – vai ficar ao pé do ouvido o tempo todo dizendo que é melhor deixar como está, cuidado, ele não vai gostar, pode querer arrumar outra. E ficar sozinha é um grande pânico feminino, porque nós não somos treinadas para sermos independentes. É mais seguro transar como aprendemos no cinema, e gostar de transar desse jeito ou acreditar que isso é simplesmente normal evita muitos problemas.

Do outro lado estão os rapazes, deitados em gordas almofadas de seda e rodeados de escravas que lhes oferecem carnudas uvas. Alguém acha que vai ser tudo bem quando acabar a mamata? Alguém acha que o marido vai achar tranquilo ser casado com essa nova mulher, que por quinze anos trepou todo dia e de repente resolveu que é só quando ela quer, e em outra posição, e com a luz apagada, e mais devagar, e com um vibrador na mão?

Um dos efeitos mais nefastos de o desejo masculino ocupar o quarto inteiro é que a gente fica sem conhecer o desejo feminino. Como nasce, do que se alimenta, como se reproduz? Na ausência dessas respostas e na fartura de mulheres que, por escolha, inércia ou resignação, são coniventes com esta lógica, o que temos é uma quase equivalência entre o desejo masculino e o sexo.

O que isso quer dizer? Que, via de regra, em relações sexuais heterossexuais a mulher está posta como objeto – seu desejo não existe. Mesmo quando sentimos prazer, esse prazer foi construído dentro de uma lógica que a coloca a serviço do prazer alheio. Ficamos felizes em servir. Amélia é que era mulher de verdade.  

Existe alguma chance de esses meninos que praticamente não sabem a diferença entre seu desejo e uma transa não espernearem? É claro que modelos sexuais que tirem o homem do lugar de dominação – no sentido de ser o seu desejo o protagonista da cama – vão encontrar resistência. Se nós persistirmos com firmeza, eles deverão experimentar sentimentos de impotência, baixa autoestima, raiva, frustração. Nós já vimos isso acontecer quando as mulheres brancas entraram no mercado de trabalho. Se eles vão reagir a isso com terapia ou com porrada é outra questão. Mas vai doer, e vai doer em todo mundo.  Estamos falando de rupturas, da criação de algo que não existe. Nós temos essa tarefa árdua de inventar um sexo que não seja mais para o outro.

Mas será que vale a pena esse trabalho todo? Bem, hoje, para uma transa consensual acontecer entre um homem e uma mulher, a gente só precisa de um “sim” e um silêncio. Não vai ser muito mais legal quando sexo só rolar quando a gente tiver dois grandes, carnudos e vermelhos “sim”?

Letícia Bahia

Letícia Bahia

A formação em Psicologia rendeu a Letícia Bahia o hábito de cavucar as ideias para além de maniqueísmos (efeito colateral: ruminação mental). A mãe professora teve a controversa ideia de ensinar-lhe as palavras antes que entrasse na escola. Desde então, escreve, sobretudo para transformar opiniões (inclusive as suas). Largou o consultório para virar Diretora Institucional da ONG AzMina. É obcecada por orquídeas (mas desdenha as de supermercado) e felinos (tem 5 rabiscados no corpo e uma dormindo na sala).