Isso é um texto de ficção, embora pudesse não ser. Em algum lugar não é: todo mundo conhece alguém que tenha feito um aborto.
É difícil escolher o ponto de partida desta história. Talvez porque seja a história de um não; talvez por ser uma história que se repete de todos os lados, um círculo em movimento que eu tivesse que, por um instante, parar num ponto aleatório para dele conseguir falar. O ponto em que paro esse círculo sou eu, uma mulher de 26 anos que terminou há pouco tempo a faculdade e ainda está se firmando profissionalmente. Mas poderia ser a Gilda, a Ana, a Eva, o Juan, que antes era a Lucia, a Vânia ou a Ester.
Até então, eu pensava em ser mãe como se para isso não tivesse que pensar: qualquer mulher que não se detenha sobre o assunto corre o risco de achar, por inércia, que quer ser mãe, mesmo sem saber de verdade o que isso quer dizer. Como se fosse uma mera característica que se somasse a uma pessoa em determinado ponto da sua vida, depois de adulta e antes de velha. Mas de repente me vi segurando aquele palito de plástico, de repente me vi diante de duas listrinhas azuis, e a inércia se desfez através de um grande chacoalhão que me perguntava: e aí, quer ser mãe?
Pelos próximos dias, pelas próximas semanas, tudo me repetia essa pergunta: minha casa, minúscula, com contrato de aluguel ainda por mais de ano; meu trabalho, que exigia plena dedicação e no qual eu queria crescer; minhas roupas, que talvez em breve deixariam, pelo menos temporariamente, de me caber; o cara com quem eu estava saindo, que me olhava e, dessa vez em voz alta, me perguntava, assustado, o que eu já não parava de me perguntar, já tendo certa a resposta dele de que não, ele não queria ser pai.
Eu também já tinha a resposta, mas minha resposta eram duas. A resposta era não, eu não queria ser mãe, ser mãe não cabia na minha vida naquele momento, e talvez não coubesse nunca (mas isso eu ainda não tinha coragem de assumir). E a resposta era sim – apesar da estranheza que meu corpo emanava, como uma névoa colada nele que o tornava difícil de reconhecer, embora ele continuasse completamente familiar –, porque já havia algum encantamento pelo que começava a surgir dentro de mim.
É muito difícil conviver com uma pergunta que exige resposta, que tem resposta, mas mais de uma, e que se contradizem. Eu queria as duas coisas e não sabia o que fazer, e se eu não fizesse nada, já teria decidido, porque o que crescia dentro de mim já não dependia da minha vontade para continuar. É tão óbvio, mas tão difícil. Uma encruzilhada, e pior: uma encruzilhada proibida, porque no Brasil essas questões todas, tão naturais diante de uma gravidez, não têm lugar legítimo onde circular porque – pasmem! – fazer um aborto, escolher entre o sim e o não, escolher que caminho tomar para a própria vida, é proibido para uma mulher. E então, além desse monte de pergunta que se repete e se insiste e se contradiz, tem um outro fator: se eu escolher que não, eu não quero ser mãe, eu tenho que dar um jeito – ilegal – de fazer essa decisão acontecer, com o mínimo de risco possível para o meu corpo já estranho por si mesmo, já cansado, já enjoado.
Eu tinha algumas economias, eu tinha várias amigas que já tinham feito abortos, eu tinha o telefone de um cara que fazia aborto em uma clínica – mas como marcar horário? Eu ligo e digo: oi, quero fazer um aborto? Ou eu tento comprar um comprimido pela internet? Ou dou um jeito caseiro de resolver a coisa? Não, isso não: sabia que era perigoso.
Eu sabia, por mais difícil que fosse minha situação, que ela era fácil se comparada à da maioria das mulheres brasileiras. O pai que não queria ser pai me disse que estava sem grana, que eu teria que me virar (fosse qual fosse minha decisão, pelo jeito, mas ele estava se referindo ao aborto – sendo que quem insistiu em não usar camisinha foi ele), mas mesmo assim, mesmo com raiva e também uma certa pena de mim por cima das náuseas que eu já sentia, eu tinha como optar por uma via mais segura, embora ainda ilegal. Eu tinha algumas economias juntadas fazia anos. Naquele momento, a inércia havia mudado de sentido: a decisão me tomou e eu procurava não pensar nem sentir muito para não mudar de ideia.
Contei pra uma colega de trabalho o que estava acontecendo para justificar que eu faltasse por um dia. Ela foi compreensiva, conseguiu segurar as pontas e nosso chefe nem desconfiou. Marquei o horário (disse na clínica apenas que queria marcar um horário com o Dr. Reinaldo) e pedi pra uma amiga me acompanhar, porque nem pra isso o pai que não queria ser pai servia.
Quando, numa manhã de quinta, cheguei à consulta e disse a que tinha vindo, o doutor me perguntou se eu estava de jejum e se tinha trazido o dinheiro em dinheiro, e eu respondi não às duas perguntas. Mas insisti para que o “procedimento” fosse feito naquele dia: eu tinha medo de desistir se fosse pra casa ainda grávida. Ele olhou no relógio, ligou para a secretária, perguntou algumas coisas em voz baixa (eu estava tão atordoada que nem tentava escutar) e disse que eu estava com sorte, porque o anestesista estava livre de tarde então eu poderia começar contar as horas de jejum e enquanto isso também sacar o dinheiro.
Assim foi. Minha amiga desmarcou tudo o que tinha pra continuar do meu lado naquela espera. Fomos ao banco, depois sentamos no banco de uma praça perto da clínica. Falamos sobre banalidades, mas nós duas sabíamos que era só uma casca de realidade por cima de um silêncio duro e profundo, que depois emergiu, e ficamos então olhando o movimento das pessoas, dos cachorros, das crianças, que eu me esforçava para olhar sem ver.
Passadas as horas de jejum, no meio da tarde, voltamos para a clínica e esperamos mais um pouco. Já não sentia fome, não sentia nada. Uma mulher chamou meu nome, pediu que eu tirasse a roupa e colocasse um avental. Minha amiga ficou na sala de espera e eu entrei sozinha numa sala com a luz muito branca e o Dr. Reinaldo com uma roupa verde-clara, luvas e máscara. Um outro homem, mais velho, também vestido assim, fazia as coisas rápido sem olhar para mim. O Dr. Reinaldo é quem me dava as instruções, deite assim, agora coloque o braço aqui e as pernas encaixadas aqui, e a mulher que tinha me dado o avental pegou minha veia. Ele falava com um tom excessivamente amável, forçando uma naturalidade que talvez para ele fosse verdadeira, mas para mim, não.
Apaguei.
Lembro de acordar gritando, sozinha, e após um tempo ver surgir minha amiga ao meu lado. O dr. Reinaldo veio me dizer que tudo tinha dado certo, me passou algumas orientações, disse que eu já me sentiria melhor – como se o procedimento dele fosse apenas para o enjoo e o mal estar físico – e eu fui pra casa.
Estava muito cansada, mas não conseguia dormir. Tudo tinha sido tão rápido, a vida toma seus rumos em solavancos e eu nem pude pensar sobre isso porque no dia seguinte fui trabalhar como se nada tivesse acontecido.
Mas eu sempre penso nisso. Até hoje, passados oito anos, ainda penso naquele dia, naqueles instantes em que apaguei, instantes que não são meus mas definiram tudo o que veio depois.
Se me arrependo? Não. Construí minha carreira e ainda não sei se quero ter filhos. Talvez sim. Ou talvez eu simplesmente não tenha coragem, ainda, de assumir que não. Mas me pego imaginando várias vezes como estaria minha vida se minha escolha tivesse sido outra. Ou se eu não tivesse tido escolha.
Outro dia pensei, de repente, no meio da leitura de um livro que não tinha nada a ver com o assunto, que eu tinha 26 anos quando decidi interromper a gravidez, a idade que minha mãe tinha ao me ter. Ela era casada com meu pai, já tinha um filho, meu irmão mais velho, e imagino que a gravidez dela de mim não tenha sido uma questão.
Nunca mais falei com o cara que não queria ser pai.
Vira e mexe alguém me liga pra pedir o telefone do Dr. Reinaldo. Eu tenho gravado na agenda do celular. Quando dou o número, já aviso: precisa estar em jejum e levar a grana em dinheiro.