Há alguns dias peguei um táxi. O motorista, numa daquelas clássicas tentativas de puxar assunto, me disse: “e aquele louco lá em Minas, hein!?”. Eu não sabia do que se tratava, e perguntei. Prontamente tive a resposta: “um maluco lá em Minas botou fogo numas crianças de uma creche. Crianças, meu Deus. Esse mundo tá muito doido. Como um camarada desse fica solto na rua pra fazer uma coisa dessas? ”. Eu ainda não tinha nenhuma outra informação sobre o fato, por isso, me abstive de comentar. Mas ele continuou: “e aquele outro louco lá nos Estados Unidos, que atirou naquele monte de gente no show? Um sujeito desse não pode ser normal. ”
Das mortes em Las Vegas eu estava sabendo, das de Janaúba ainda não. A insistência do motorista em dar status de anormalidade para os autores dos crimes não é algo incomum. Nos dias seguintes vi inclusive colegas de profissão (sou psicólogo) insistirem em classificar os sujeitos em algum transtorno mental, uma tendência sempre que um evento assim aparece na mídia. Mas o que as pessoas que seguem essa linha falham em perceber é que são raros os crimes como esses que poderiam ser justificados por uma doença mental. Na verdade, é muito mais comum alguém dito “normal” fazer algo do tipo. Relacionar crimes bárbaros necessariamente com alguma doença psicológica só contribui para duas coisas: perpetuar o estigma de quem passa por algum sofrimento psíquico e desresponsabilizar a sociedade pelo sofrimento geral.
O estigma de quem adoeceu mentalmente vem de séculos. Hoje é uma questão de fraqueza individual, um desvio moral, um fracasso próprio daquele sujeito. São pessoas que fogem da “normalidade”, e justamente por isso são depositárias daquilo que a sociedade quer expurgar. Mas quando responsabilizamos apenas indivíduo por sua condição, ou responsabilizamos a condição pelo mal causado, ignoramos toda uma estrutura que contribuiu para que as coisas chegassem a este estado.
O conceito de “banalidade do mal” foi utilizado pela filósofa Hannah Arendt para falar de como os responsáveis por crimes e tragédias monumentais geralmente não são marcados por uma grandiosidade demoníaca, mas são bastante mundanos. Ela acompanhou o julgamento de um dos responsáveis pela logística do Holocausto, Adolf Eichmann. Ao invés de um gênio maléfico ela encontrou um sujeito limitado, incapaz de pensar por si mesmo, que a vida inteira buscou fazer parte de algo e que sempre teve como meta a normalidade. O mal não é banal porque é corriqueiro, e isso é importante ressaltar. A banalidade do mal está no fato dele ser desprovido de profundidade, de ser um nada, mas que pode crescer, como um fungo, se valendo da desumanização das pessoas que são transformadas em meras engrenagens de um sistema.
Quando nos referimos a Stephen ou Damião como monstros ou loucos, estamos tentando alienar o mal, personifica-lo, isola-lo, mostrando que são maçãs podres em meio a frutas boas. É, parece que Damião tinha problemas psicológicos (ufa!), a vida segue. Mas não há nenhum indício que seja o caso de Stephen. O que parecia haver no atirador é uma grande normalidade. Não tinha antecedentes, parecia uma pessoa tranquila, produtiva, enfim, normal. A tendência em colocar esses indivíduos como doentes apenas ofusca os males do excesso de normalidade. Quem leva uma vida muito irrelevante, desinteressante, obediente e ajustada, em algum momento pode voltar-se contra todos esses encaixes de sua existência em busca de algo que faça a diferença, que dê alguma notoriedade ou que gere algum afeto.
Também não é apenas a disponibilidade de armas nos EUA que promoveu a tragédia em Las Vegas. Damião usou álcool, terroristas na Europa usam carros, pessoas jogam crianças pela janela. O que quero dizer é que enquanto buscarmos as raízes dos problemas nas exceções, deixaremos de ver o que em nosso cotidiano contribui para nossa desgraça. Essas coisas não ocorrem do nada, há um histórico de sua construção que não precisa ser necessariamente extraordinário. Muitos horrores são causados por pessoas simples.
Enquanto o mal-estar na civilização for visto como um fenômeno individual, que cada um é responsável por seu sofrimento, continuaremos assistindo a eventos como esses. O mal não é imponente ou sobrenatural. É banal, se alimenta da indiferença com relação ao outro, da insensibilidade à dor alheia e se espalha por onde o pensamento está ausente.