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Eu, Um Corpo no Mundo: Reflexões sobre o Mundo Virtual e a Cibercultura

"Se o computador é uma nova janela para observar e conhecer o mundo, certas sensações só podem acontecer quando percebidas num corpo exposto ao objeto. Como explicar para a criança, senão pela própria experimentação, a textura da areia, os sabores deflagrados pelos alimentos, o calor, o frio, a saudade?".

Por Deborah Brum |  22 de outubro de 2017

Quando escrevo, me distancio da dor de ser, pois a escrita invade espaços aonde meu corpo não pode chegar, e eu, então, imersa nesta espacialidade corpórea que só o texto permite, desterritorializada, posso criar outra existência, um novo eu. No entanto é, justamente, esta não presença que se comunica. Na escrita, nos comunicamos com o corpo em segredo, não revelando nossas expressões corporais, e isso permite criar uma intimidade que, mesmo não sendo física, é real. No anonimato do corpo, recriamos o mundo, um fenômeno no qual não é possível uma distinção real e clara do que é fantasia e realidade. Assim, estabelece-se um estreito parentesco entre o mundo que nos é apresentado e aquele inventado. Enquanto, no primeiro, nossos corpos são submetidos às leis das representações e dos objetos, no segundo, podemos construir uma nova forma de existência, criando condições para um nova relação com o corpo.

Se a escrita modificou a relação de sociabilidade da civilização, a cibercultura é também responsável por uma extraordinária mudança na comunicação e consequentemente na interação dos sujeitos, e deles, com o mundo.

Escreve Schopenhauer: “O mundo é uma representação minha”, ou seja, “ o mundo somente existe em relação com outro ser, com o ser que o percebe, com ele mesmo”. E como esta representação é nossa, individual, pois não podemos sair de nós mesmos para ver as coisas como elas são, e no corpo percebemos o mundo, a construção da representação dele se dá, obrigatoriamente, entre objeto e sujeito. Assim, o mundo é uma extensão do nosso próprio corpo afetado por este. E como percebemos ele é muito mais nosso do que do próprio mundo, uma representação, que não é a coisa em si, mas fenômeno (“ a única realidade cognoscível”, diz Schopenhauer); sendo este a ilusão que envolve a realidade, a percepção dele acontece também no limite dos corpos, nas vivências experimentadas por eles.

Na era da cibercultura, na qual não parece mais existir um tempo sequencial com a mesma intensidade de antes, estabelecido por uma ordem cronológica entre passado futuro e presente, todas as coisas acontecendo e se transformando com rapidez, nossa percepção do mundo nos ciberespaços acontece num corpo que transita entre o devaneio e a vigília. Mas, quando percebemos o mundo através de nossos sentidos e, nesse contexto, o corpo relaciona-se ao objeto in loco, o homem também torna o seu corpo objeto e mundo experimentado, vivenciando a sua natureza.

É fundamental que experimentemos o mundo no corpo para que possamos nos sentir pertencentes a ele e, mergulhados, também nos conheceremos melhor.

Se o computador é uma nova janela para observar e conhecer o mundo, certas sensações só podem acontecer quando percebidas num corpo exposto ao objeto. Como explicar para a criança, senão pela própria experimentação, a textura da areia, os sabores deflagrados pelos alimentos, o calor, o frio, a saudade?

Por outro lado, menciono novamente Schopenhauer, a essência do nosso ser é vontade insaciável, uma tensão contínua, que ora é dor, ora, tédio. Assim, parece-me que no espaço virtual, o indivíduo anula temporariamente a sua vontade e, portanto, sua dor. Porque, de fato, quando nos afastamos de nós e adentramos naquilo que já não somos, nos alienamos de nossas frustrações. Afinal, assim como a escrita, no virtual, podemos ser anônimos, nos expor com um distanciamento que parece nos proteger, mesmo correndo o risco de nos distanciarmos de nós mesmos. Contudo, enquanto no processo da escrita, se fabula num tempo e espaço suspenso e fictício, possibilitando a invenção de um eu que não é, no virtual, o homem finge, mas, sem se desconstruir por inteiro, não pode se reinventar.

A comunicação é primordial entre nós. Somos carentes dela e, como seres sociáveis, estamos sempre a procura do reconhecimento do outro, da aceitação. Mas é imprescindível que construamos, cada qual, a sua identidade através das experiências e escolhas com/no mundo. Sujeitos condenados a liberdade, afirma Sartre.

O mundo virtual, como realidade, carrega também as mazelas da vida.

Tão difícil e bom é viver!

 

Deborah Brum

Deborah Brum

Deborah é mãe, casada e feliz. Está viva quando escreve. Tem medo de não ser o que é, apesar de amar a ficção e achar que ela vale a pena. Vive com a incerteza plena que, paradoxalmente, traz a certeza mais dura: a morte. Sonha em publicar livros bacanas, ter uma família grande e morar em Cumuruxatiba, o seu lugar!