Infame

Pequenas Revoluções Poéticas – Entre a Seca e a Chuva

"E enquanto a gente queima, as vozes baixinhas das nossas transições, das nossas mortes, nos mantém acordados durante a travessia silenciosa, que é feita através de nossas pequenas revoluções do dia-a-dia".

Por Guta Assirati |  21 de outubro de 2017

Domingo. Pertenço a um grupo de alguns terráqueos do nosso contexto urbano contemporâneo, que o consideram um dia esquisito. Não é sobre estar só ou rodeada da companhia de pessoas queridas. Não é sobre religião, ou sobre os compromissos que chegarão junto com a segunda-feira. Nem sobre a nostalgia por detrás da voz deliciosamente familiar dos comentaristas de futebol, ou da insuportavelmente familiar dos apresentadores dos programas de auditório. O fato é que o domingo eu sempre tive como um vazio. Uma transição.

Embora seja uma ficção, assim como o restante da semana, fruto de um sistema adotado para padronizar a contagem do tempo em grande parte dos lugares do mundo, o domingo representa esse não-lugar, ou não-tempo. Uma ponte que liga um período – semana – que passou, a outro que ainda não chegou. E talvez seja isso o que o torna difícil. Esse chamado que o silêncio e o vazio, que a transição e a travessia, fazem para que nos afastemos do que vai ficando para trás, e nos mantenhamos presentes na disposição de seguir rumo ao desconhecido.

No último domingo, enquanto atravessava essa ponte dominical, eu acompanhava pelas redes sociais, a polêmica interação de uma menina com a nudez artística exposta no Museu de Arte Moderna em São Paulo. Leio as manifestações, concordando com as reações contra o conservadorismo, a superficialidade do debate, e a hipocrisia. Sinto um ímpeto de falar, de escrever. De expressar minha descrença ante esse comportamento social, que volta aos poucos a reafirmar abertamente todos os dias, valores que vão tentando secar a fonte de nossa identidade. Não cedo ao ímpeto, deixo de escrever. Com a certeza de que tudo já foi dito, e de que a enxurrada de frases de resistência que transborda pelas telinhas dos celulares, não irá afogar essa estupidez, que já é uma antiga miopia social, e que vai agora nos cegando numa velocidade incompreensível.

Até outro dia, tínhamos menos desemprego, achávamos possível exercer o direito à seguridade social, assistíamos à inclusão socioeconômica, tínhamos expectativas de transformações emancipatórias, etc, etc. Isso mudou. Aqui e no resto do mundo. Mas, o mais inacreditável é perceber o aprofundamento da miséria mais sutil. Estamos empobrecendo aos poucos enquanto povos, estamos sendo confrontados pelo que somos, por nossos pertencimentos, pela expressão de nossas formas de pensar, de ver e interagir com o mundo, de nossas culturas, de nossas manifestações afetivas, artísticas, religiosas, rituais.

O cansaço e o gosto amargo de indignação e desesperança na boca vão se tornando mais agudos a cada dia. Vejo pessoas que sempre estiveram a meu lado adoecendo, envelhecendo, tateando, no escuro o caminho para abrir alguma porta que possa nos libertar dessa mediocridade em que querem nos trancar.

Engulo esse amargo e saio para um encontro marcado para discutir o próximo evento de poesia e música que vamos realizar. Resisto pela arte. Enquanto dirijo até o final da Asa Norte, contemplo o céu de Brasília, que nessa época do ano já tem na pele a cor de uma água que pode chegar a qualquer momento. Já não estamos no auge da seca. Mas as chuvas também não chegaram de vez. Tempo de transição. A paisagem já não é cinza, mas ainda não coloriu por completo. Enquanto o Cerrado se restabelece das queimadas, penso nessas pontes. Que nos jogam num espaço de silêncio próprio das travessias. Entre uma semana e outra, entre a seca e a chuva, entre o medo e a esperança, entre o retrocesso e a reação, entre o porre e o fim da ressaca, tem o silêncio.

Sempre ouvi dizer que o Cerrado, – que me perdoem a simplificação aquelas(es) que realmente entendem do assunto – adaptado às queimadas decorrentes do fogo provocado por causas naturais, acaba se beneficiando desse fenômeno. O fogo não chega até os extratos mais profundos da vegetação, porque suas camadas superficiais a protegem, isolando termicamente sua “essência”. Nutrientes que estavam imobilizados nas palhas secas da vegetação, necessários à revitalização do sistema, são devolvidos às raízes, em forma de cinzas, como “alimento”. Por isso as plantas do Cerrado rebrotam tão vigorosas após a queimada. E em algumas semanas de chuva o verde reaparece substituindo o tom cinza deixado pelo fogo do período da seca.

Perco a entrada da Quadra, com a cabeça já na seleção de poesias e músicas que dialogam com o tema. Os ciclos, que não são semanais. Que não se prendem às estações do ano. E que não são fenômenos exclusivos dos processos sociais ou políticos. São ciclos de tudo que existe. Parece óbvio e simples demais? Pode até ser. Mas por que é, então, que nos surpreendemos a cada mês agosto, com a explosão solitária de um ipê em flores estonteantemente amarelas bem no meio do deserto ocre?

No meio da sequidão de violência, racismo, misoginia, machismo, homofobia, e intolerância; no campo de retrocessos empobrecedores em todos os sentidos, opressores, conservadores e hipócritas; no centro das brutalidades que vêm sendo cometidas contra nossas humanidades, liberdades, e diversidades, amargando cada dia mais as nossas bocas, operam as cinzas de nossa poesia, alimentando nossas raízes.

A gente vai cansando de reagir nas redes sociais, vai adoecendo, vai perdendo as expectativas, vai envelhecendo, vai ficando um pouco amarga. Mas nossas convicções permanecem intactas. Penso se Hilda Hilst e Leminski abrem ou encerram nossa intervenção. E enquanto a gente queima, as vozes baixinhas das nossas transições, das nossas mortes, nos mantém acordados durante a travessia silenciosa, que é feita através de nossas pequenas revoluções poéticas do dia-a-dia. Se elas parecem frágeis, é porque sua essência, preservada pelas camadas superficiais de nossas identidades, espera o tempo das próximas chuvas.

Foto: Agência Brasília

 

Guta Assirati

Guta Assirati

Guta Assirati é nascida em São Paulo e vive em Brasília há uma década. Mulher, indigenista, militante e atuante na promoção de direitos indígenas, sociais e humanos. Atualmente é consultora independente e dedica-se a suas grandes paixões, o trabalho com povos indígenas, a poesia, a literatura, a música e outras manifestações artístico-culturais de expressão de seus anseios de significações e transmutações.