Infame

As Vontades Dela (e as Vontades das Suas Vontades)

"Aos poucos passou a ter a mesma atitude em todos os outros momentos da vida. Aceitava convites, presentes, beijos e corpos. Aceitara um noivo, suas traições e um divórcio. Aceitara um emprego, duas promoções e uma transferência. Aceitara mudar de endereço, de país e de continente. Mas nunca aceitou reconhecer os próprios desejos e agora encontrava-se sozinha entre as vozes de conselheiros inexistentes".

Por Nara Yoko |  19 de outubro de 2017

Esta cidade é bege, pensou. Há cidades verdes, cinzas, azuis e esta é bege. Por onde se anda, dois, três passos, tudo é bege, moldado com argila e areia. O vento dos anos não chega aqui, faz a curva nos muros, não se prolonga, ele vai embora. Aqui o tempo não sopra, não caminha, nem voa, ele senta para tomar um café bege diante de alguma ruína bege sob o sol bege de outubro.

Claudia nunca gostou de bege, mas gostava dali. Pediu um espresso e sentou-se diante da maravilha bege. Sozinha. Há dias estava sozinha num país que não era o seu, ouvindo uma língua que não era mãe, caminhando por ruas que não eram a sua. Embora tudo lhe parecesse familiar, como lembranças de uma vida passada, ela sabia que continuaria a ser a estrangeira entre os amigos que viesse a ter ou os caras com quem viesse a dormir, carregaria consigo a fisionomia estranha, o sotaque engraçado e as letras trocadas.

Agora a luz do sol bege atingia as lentes dos óculos escuros por entre as folhas beges de uma árvore qualquer e Claudia ajustou-os sobre o nariz. Havia muitas árvores na cidade, mas ela não parecia menos bege por isso. Ao contrário, era outono. O restinho bege de café no fundo da xícara indicou que ele acabara antes do que ela imaginava. Percebeu que, até então, cada fase de sua vida durou um gole curto de café e riu. Ela nunca gostou de café.

Quando criança, pensava que, se recusasse o que lhe fosse oferecido uma vez, aquilo nunca mais lhe seria oferecido novamente e ela não teria mais a oportunidade de experimentá-lo quando sentisse vontade. Então tornou-se a queridinha entre as mães de seus colegas, já que não fazia desfeita dos almoços em suas casas. Automaticamente ela assumiu que nunca poderia recusar um café, pois senão chegaria o dia em que sentiria vontade de tomá-lo e ninguém lho ofereceria.

Aos poucos passou a ter a mesma atitude em todos os outros momentos da vida. Aceitava convites, presentes, beijos e corpos. Aceitara um noivo, suas traições e um divórcio. Aceitara um emprego, duas promoções e uma transferência. Aceitara mudar de endereço, de país e de continente. Mas nunca aceitou reconhecer os próprios desejos e agora encontrava-se sozinha entre as vozes de conselheiros inexistentes.

Quando o seu casamento acabou, ela não sentiu raiva, tristeza, dor ou alívio. Parecia previsível para ela depois dos três anos, das respostas tortas, dos desvios dos olhos, do abandono das mãos. Todos os dias, ela o observava partindo a passos largos e voltando ofegante e pesaroso. No outro dia, ele afastava-se de novo, dessa vez ainda mais longe. Até que ela o perdeu de vista. No dia seguinte, ele passava um café novo quando deu o veredito. Ela tomava um café velho quando aceitou a sentença.

Claudia sabia que, enfim, não poderia lamentar-se das nulas decisões que tomou durante a vida. Sua falta de perspectiva levou-a para bem longe, até a cidade bege que cheirava a café e tabaco. Centenas de pessoas atravessaram seu campo de visão na última hora e Claudia sentia-se aliviada por não conhecer nenhuma delas, pois assim não lhe fariam perguntas ou imporiam respostas. Precisava saber quanta gente nova ela seria capaz de aceitar em sua vida a partir de então e deu-se conta que, naquele momento, já havia começado a apagar da memória as histórias passadas. Elas não mais lhe seriam úteis e Claudia sentiu a necessidade de congelar o momento atual para vivê-lo todos os dias. Poderia passar todos os dias ali sentada a tomar o mesmo espresso no mesmo café diante da mesma maravilha bege. Foi a primeira vez em que desejou algo em sua vida.

Quando o garçom perguntou-lhe se desejava mais alguma coisa, Claudia sorriu e negou. Tudo estava perfeitamente alinhado com a sua vontade de permanecer ali até o dia seguinte. Ou o mês. Ou o ano. O garçom retornou para o seu balcão bege e ela retornou para si, segura de que tudo o que lhe acontecesse dali em diante encontraria lugar em sua vida. Cada garçom, cada café, cada transeunte passeando com o cachorro e o celular penetraria seu corpo através de algum dos cinco sentidos e tomaria conta de um espaço qualquer lá dentro para cravar a bandeira territorial. E ela sentiu, de fato, uma pontada quando, a três metros, estacionou um ciclista casual procurando algum lugar para se sentar. Ele usava óculos escuros e os dois primeiros botões da camisa abertos, olhou sorrindo ao redor depois de prender a bicicleta ao poste, puxou o maço de cigarro do bolso da bermuda e cumprimentou o garçom. Claudia sentiu a boca seca e lambeu os lábios. Foi a segunda vez em que desejou algo em sua vida.

Ela sabia o que aconteceria. Neste espaço de tempo entre dois segundos ela percebeu que as suas vontades também tinham vontades. Estava disposta a aceitar todas as propostas que ele lhe faria porque essas seriam as vontades de suas vontades também. Parecia previsível para ela depois que ele virou o olhar, o rosto e, em seguida, o corpo em sua direção e aproximou-se rapidamente. Ele perguntou-lhe num inglês mediterrâneo se a outra cadeira estava livre e, como ela custou a entender a pergunta, cerrou os olhos em direção aos dele. As mãos grandes apoiadas na cadeira faziam dançar os dedos impacientes à espera de uma resposta. Apesar da pele bronzeada, da barba rala e do sorriso terno, os seus olhos eram beges. Ele cheirava a café e tabaco, então Claudia queria respondê-lo com aquele mesmo cheiro, mas antes mesmo que conseguisse responder, ele já estava sentado diante dela oferecendo-lhe mais um café.

Nara Yoko

Nara Yoko

Nara Yoko atualmente tenta ensinar outras línguas para as pessoas. Sempre amou a Literatura e decidiu entrar na faculdade de Letras para entendê-la melhor. Acabou entendendo a si mesma um pouco melhor e seu sonho agora é escrever o bastante para passar o resto da vida ao lado de seus felinos.