Nossos heróis envelheceram. Alguns morreram de desgosto, outros, vivem na beira de qualquer lago clichê onde caiba sua aposentadoria. Nossos heróis, aqueles caras que vinham quando precisávamos de socorro, quando incorporávamos a mocinha desamparada, estão todos usando chinelos confortáveis e se preocupando mais com a pinta que cresce na testa do que com a segurança de quem quer que seja. Não adianta projetar morcego nas nuvens, nem testar Chapolin com: E agora? Quem poderá nos defender? Vixe meu filho, ninguém vai lhe defender. Nem os caras que você elegeu, que ganham pra isso, o fazem, quem dirá aquele bando de mortal iludido que malhava demais.
Nascemos num lugar curioso do tempo, comemoramos aniversários vestidos com capa vermelha e alguns anos depois nos despimos gritando Cazuza, que já havia entendido que nossos heróis venderam a fantasia pra comprar drogas… E morreram de overdose. Dizem as boas línguas que alguns enlouqueceram, perceberam que o vazio existencial não poderia ser preenchido pela fama e, hoje, vivem no meio da floresta amazônica aprendendo a fazer ayahuasca. Soube até daqueles que largaram tudo o que se assemelha a triunfo, sucesso ou “já está com a vida ganha” pra seguir um sonho maluco de viver com o mínimo de recursos usufruindo do máximo de tempo, vivo naquilo que realmente o faz sorrir… Vai saber… Muitos heróis conhecidos só se encontraram ‘perdendo a lucidez’ perante os valores alheios, saindo da linha. Uma a uma também estão sendo enterradas aquelas heroínas barbies, que faziam nossa pancinha cheia de vermes parecer algo um pouco desajustado, mas ainda, como um trauma de infância, sentimos na pele (nos pés, cabelos, seios, barrigas, bundas…) toda imposição silenciosa em sustentar características físicas, que na grossa maioria das vezes, são profundamente incompatíveis com nosso molde, desmaquiadas e nuas. Algumas delas seguem adoecidas buscando burlar o tempo em clínicas plásticas, outras leram Simone de Beauvoir, arrancaram o espartilho e correm grisalhas com os lobos… confesso que dessas ainda coleciono figurinhas.
Ainda tá cheio de eco heróico nos discursos, na política, na universidade, na televisão, nas redes sociais, nos objetivos secretos… já sabemos. Ainda tem lavagem cerebral, desse tipo e de outros, se propagando nos lugares onde as pessoas não abriram os olhos o suficiente pra enxergar a doença disfarçada de diversão ou vitória. A coisa está começando a mudar, também sabemos, já existem lugares onde esse passado é ainda mais distante e isso é motivo de comemoração! De festa! De vender a capa vermelha e encher a cara de vinho. É uma alegria imensa estar viva num tempo onde as pessoas se unem pela justiça de viverem com liberdade seu sexo, sua cor, sua cultura, sua história, sua verdade. Presenciar uma crescente ciranda feminina gritando em coro que são irmãs e não rivais. Compartilhar das calçadas aonde os amores se beijam, independente do formato do sexo que carregam entre as pernas. Me embasbacar com a autenticidade do nosso Brasil filho de preto, de índio, de pobre, espalhando sua arte, seus cachos absolvidos de alisamento, suas mãos fortes e hábeis em sustentar uma sociedade tão moralmente frágil, que nos esconde debaixo de tapetes e desculpas caras. Me sinto fortalecida ao ver meninas que odeiam rosa e meninos que amam bonecas, e perceber que o número de pessoas que se importam ou associam essas escolhas a o que essas crianças farão com seus órgãos sexuais quando estiverem maduros, caiu consideravelmente. Mais gente está virando a cara e falando, pausadamente: BA-LE-LA. Balela pra tudo que tente nos encaixotar, balela!
Interessante perceber que todo esse heroísmo começa a se dissolver lentamente nas mãos quentes daqueles que entenderam que o amor era a mensagem real, e não o destaque, não o ser escolhido, o principal, especial, maioral… Jesus deve estar relaxando aos poucos vendo que só agora, depois de tanta violência e ignorância, alguns brothers estão percebendo que o rolê dele era igualdade, linear, e que lhe enfiaram a capa vermelha por puro desejo perverso de se destacar. Nós humanos, manipuladores de base, vivemos de moldar os exemplos pra sossegar nossa inquieta inadequação insegura. Mesmo que ainda existam profissionais e empresas que engordam a carteira adoecendo gente, também se espalham por aí projetos que guiam nossos filhos pra uma realidade cooperativa, real e doce… Quem sabe esses, que vestem roupas e ideais confortáveis, sejam os heróis dos nossos netos. Aí sim eu volto a decorar festa infantil com personagem, desde que seja um bem humano, que ensine pra toda gente, miúda ou não, que só o músculo cardíaco tem força suficiente pra salvar o mundo.