Loucura, introjetada no coração dos homens, desabrocha no peito, flui no sangue, domina a carne, range os dentes, vacila as pernas e compõe o brado. Fabrica os inválidos, os poetas e os amantes. Move a boca para entoar verdades, sobre outras bocas que seguem caladas, sobre outras bocas que chupam picolé, sobre outras bocas que ditam regras, sobre outras bocas que gritam: louco! A boca do louco é denuncia social. Não é à toa que desejam calá-la.
Se escutarmos os loucos, nomenclatura que se refere aos que possuem uma maneira de pensar considerado anormal pela sociedade (o que transgride o jeito de matutar da fina flor), ouviremos as verdades que sentimos pulsar no íntimo, mas que a sanidade nos obriga a afagar. Se procurarmos os loucos pelo Brasil, os encontraremos nas ruas, nas praças, na sarjeta, nos bares, nas cidades, no campo, nos grandes apartamentos e nas cadeiras do Congresso. Porém há um lugar onde todos os loucos se concentram e se nós procurássemos provavelmente não iriamos achar: eles estão atrás de grandes muros gorando em hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários. Alguns sabem que aquele chão gelado será seu sepulcro, outros mal podem esperar para descer para a cova, não duvido que seja mais agradável deitar num buraco na terra do que dormir no hospital.
Sobre esse cenário, encontro diferentes dizeres por aí. Em 2001, a aprovação da Lei nº 10.216, que modifica o modelo assistencial em saúde mental com base nas premissas da reforma psiquiátrica, gerou significativas mudanças no modelo de saúde mental brasileiro com uma cobertura assistencial maior, chegando a todos os estados com os Centros de Atenção Psicossocial e andando em direção à erradicação do modelo manicomial brasileiro tão denunciado, nutrido de violações dos direitos humanos. Porém é um longo caminho a ser percorrido, escuto pessoas do meio da psicologia dizerem que após a reforma psiquiátrica os manicômios foram erradicados (não podemos mais usar esse nome, inclusive), temos o dia da luta antimanicomial em que multidões marcham pelos insanos trancafiados e os loucos são agora tratados com dignidade no restante do ano. Me pergunto se esses psicólogos já espiaram pelos altos muros dos manicômios hoje em dia. Me pergunto se os estudantes das faculdades de psicologia, medicina e enfermagem sabem o que de fato acontece lá. Isso eles não dão em aula.
Me pergunto se eles sabem que o Núcleo de Atendimento Médico (comumente chamado pelos pacientes de jaula) ainda existe nos hospitais psiquiátricos. Um espaço de poucos metros, trancado a sete chaves, onde são despejados os pacientes violentos, os que sofrem crises de abstinência, os que apresentam risco extremo à própria vida, os que roubam, transam ou tentam fugir. Todos juntos num espaço de poucos metros. Me pergunto se eles veem que há homens e mulheres que ficam aferrolhados por longos períodos de tempo nesses espaços pequeninos, como foi o caso de um senhor conhecido meu que ficou lá 6 meses, e provavelmente ainda está lá. Apenas com uma cama nos quartos, uma TV quebrada e dois sofás furados no espaço compartilhado, bem como doses diárias de Haldol à força. Se o paciente não reagir bem a esse espaço, ele é amarrado na cama pelo tempo que julgarem necessário, até se acalmar. Me pergunto se esses psicólogos já comeram a comida de lá e consideraram saborosa, ou ao menos nutritiva. Me pergunto se eles sabem que os dentes dos pacientes mais violentos são extraídos à força no intuito de impedir que eles mordam. Me pergunto se eles sabem que depois que eles vão para casa os loucos continuam omitidos por lá. Me pergunto se eles entendem que os loucos tratam de ser os mesmos animais que eles, e quando morrerem, serão todos comidos pelos mesmos vermes.
Hoje penso no louco como quem disse não. Louco aquele que desafia. Que grita. Que se impõe num mundo de pessoas conformadas. Louco aquele que não se entrega às injustiças. Louco quem se incomoda, louco quem se debate, quem bate, quem percebe o coração bater. Louco quem chora, quem geme, quem goza. Louco quem construiu o primeiro barco para nadar contra a maré. Louco quem percebeu o mundo girar em hélice. Louco quem não quis obedecer ao Rei. Louco era Jesus na cruz. Todos loucos dotados de luz. A marginalização do louco não é coisa recente. Hoje tem louco de carteirinha assinada, louco de pele inflamada, louco de engenhoca quebrada. Louco quem sente tudo e louco quem não sente nada. Louco que olha no olho e não na câmera de selfie. Louco quem diz o que pensa, ou pior, o que sente. Louco quem não se senta. Louco criança, louco aos sessenta. Louco louro preto e pardo. Louco no escuro do quarto ou louco na multidão. Tem louco em tudo que é canto e principalmente nos cantos. Louco atrás da porta, louco abrindo portas e o louco que constrói as portas. Loucos os bebês que não acharam as tetas, as crianças que não brincaram, os jovens que não viram o horizonte, os homens que não acharam o amor e os velhos que adoecem. A loucura mora no coração de toda dor. Então me pergunto, porque trancá-la?
A política de confinamento dos considerados insanos ainda persiste, mas se dá de modo que “a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos”. No entanto, não é custoso conseguir tal laudo. Maridos persuadem médicos a internar suas esposas gravidas com base num episódio de braveza a fim de garantir a saúde do filho, maridos internam esposas que pedem divórcio, um mudo que não conseguia ser compreendido e apresentava comportamentos incomuns também rumou para um hospital psiquiátrico, e a lista segue grande para quem é minoria. Até conseguiram um laudo com o meu nome. Quem conhece o muro de dentro e o de fora, acha que ele foi construído inclinado: parece bem mais alto quando se olha do interior.
O empecilho de adentrar um manicômio é justamente sair: a alta clinica depende de um médico e a alta pedida, da família. Sem família para acudir, mente dotada de apaziguamento, ou uma capacidade absurda de teatro para simular uma cura, pacientes passam mais de 30 anos nos hospitais (a pena máxima de prisão no Brasil). Os loucos são trancafiados, olvidados e domados por remédios fortíssimos com efeitos colaterais desagradáveis e indícios de alta dependência. Chegam a receitar o Flunitrazepam, um benzodiazepínico da mesma classe dos encontrados no corpo de Michael Jackson quando faleceu. Ele causa morte se misturado com álcool e “os efeitos de sua administração geram redução do desempenho psicomotor, com diminuição dos reflexos e da atenção, e ocorrência de amnésia (lapso de memória)”. Proibido nos Estados Unidos e usado na produção do Boa Noite Cinderela, ótimo para um efeito dopante e dado de bandeja (digo, à força) aos pacientes dos manicômios brasileiros, junto do famoso Haldol. Configurando assim uma espécie de lobotomia contemporânea. O jeito que se dá no Brasil, não somente com os loucos, mas com todo ser marginalizado, é a sua exclusão dos espaços públicos, para que aquela gente feiosa não incomode o olhar de quem passa. De olhos fechados e panos quentes nas mãos, poderia dizer que estão tapando o sol com a peneira, mas na verdade jogaram fora a peneira e deixaram que os homens morressem queimados. Dizem que Deus é brasileiro, e nessa loucura de ser bom, quem garante que ele não está internado?
Sendo assim, defendo com toda força a luta antimanicomial, o tratamento pela escuta, pela arte, pela compaixão, não pela exclusão. Defendo a leitura do insano como um gênio de linguagem incomum, com muito a ensinar. A compreensão do louco como um humano que meramente possui um pensamento alternativo e sente coragem o suficiente para agir de acordo com os seus ideais, coisa que falta no homem contemporâneo. Hoje me digo louca até na carne debaixo da unha, na pele atrás da orelha, no fundo do umbigo, nos espaços entre os dentes. Compactuo com os que compartilham do sentimento e entendo essa luta como minha também. Mas já disse Philip K. Dick, às vezes uma resposta apropriada para a realidade é ficar maluco.
Olhos vedados pela ingenuidade do “não saber” são perdoáveis, mas é sem pesar algum que, com esse texto, te roubo a inocência do desconhecer, que autorizaria o conformismo para com esse problema iminente. Se fechar os olhos, é por descaso, não por ignorância.