Infame

Dona Zefa: A História de Quem Veste os Mortos e Recebe os Vivos

Confira hoje um trecho do livro "Branco Vivo", do escritor Antonio Lino e recentemente lançado pela Editora Elefante, em que ele relata viagens por aldeias indígenas, comunidades quilombolas e periferias urbanas, acompanhando doutores do Programa Mais Médicos.

Por Antonio Lino (texto) e Araquém Alcântara (fotos) |  09 de outubro de 2017

Ao longo de um ano, o escritor Antonio Lino fez uma série de viagens pelo Brasil, acompanhando o trabalho de médicos e médicas. A proposta era conhecer de perto os brasis, os brasileiros e as brasilidades encontrados por sete doutoras e cinco doutores do Programa Mais Médicos. O resultado destas viagens é o livro “Branco Vivo”, que também conta com fotos do renomado Araquém Alcântara.

Zefa tinha dez anos quando começou a vestir os mortos. Expirasse alguém naquele sertão do Sergipe, aos pés da Serra da Guia, e logo mandavam chamar a menina, versada em sabedorias fúnebres. Depois de lavar o corpo desalmado, e cobri-lo com o traje derradeiro, Zefa ainda abençoava o defunto, oferecendo-lhe palavras úteis à travessia. À parte um ou outro exemplo dos pais, ambos benzedores de ramo, quase todo serviço lhe ocorreu por natureza, sem lição de ninguém:

— Foi uma luz que eu recebi.

Com tal dom, precoce e divino, a rezadeira mirim logo transcendeu os velórios: além das despedidas aos falecidos, com onze anos de idade, Zefa passou a cuidar também dos trâmites inversos — as boas-vindas aos recém-nascidos. Um acaso iniciou a menina no novo ofício. Aconteceu certa noite: com a barriga madura, a vizinha gemia os alarmes do nascimento. Ao lado da gestante, empunhando o gargalo de uma garrafa aberta, uma parteira veterana, bem reconhecida na comunidade, tomava de golada as primeiras providências: conforme o costume da época, o trabalho de parto era regado a cachaça. O incomum foi que o filho demorou mais que o previsto para se desaconchegar do interior da mãe. As contrações se prolongaram, sem expelir criança alguma. De modo que a bebedeira entrou pela madrugada. E logo passou da dose: horas depois, ao amanhecer, quando enfim acordou daquele pileque fundo, a parteira encontrou seu serviço todo pronto — o rebento nascido, com o umbigo cortado, banho tomado, embrulhado nos panos, sugava tranquilamente sua primeira refeição no seio da mãe. Até a placenta já estava enterrada. Tudo bem feito pela moleca benzedeira, que no meio da noite acudiu sozinha os gritos da vizinha desamparada, e começou assim sua longa carreira: hoje, aos 71 anos, Dona Zefa da Guia contabiliza mais de cinco mil partos assistidos. E segue ativa, no pleno vigor da saúde, fiel à missão que os céus lhe confiaram: pegar menino, velar os mortos e rezar no povo.

Para pedir a benção à matriarca, depois do voo até Aracaju, enveredo por mais três horas de distância sertão adentro. Ao chegar em Poço Redondo, no interior do Sergipe, estico mais quarenta e cinco quilômetros, do centro do município à zona rural, tropicando o carro alugado nos buracos da estradinha cascalhada que rasteja em meio à paisagem espinhenta, nos arredores da Serra da Guia. Viajante antiquado, sem as muletas do GPS, tateio o caminho. A cada raro vulto que emerge da poeira, em geral alguém sobre lombo de moto ou cavalo, baixo o vidro, coloco para fora um aceno e aproveito para renovar a confiança na minha direção. De boca em boca, alcanço meu destino: nestas redondezas, só não conhece Dona Zefa quem ainda não nasceu.

— Vamo entrá, meu irmão. Que o sol enjoa.

Desde cedo, à sombra da varanda, os tocadores já estão afinados soprando seus pífanos, um fazendo a terça do outro, com a caixa e o zabumba na retaguarda. Chego à comunidade em ocasião especial: a tradicional novena do Padre Cícero que Dona Zefa promove, religiosamente, no último sábado de todo novembro. A casa pequena da anfitriã estufa de devotos. Quem chega vai logo afundando um caneco de metal dentro de uma das três moringas de barro, à disposição das goelas áridas, no canto da sala. Encostada numa das paredes, em meio a flores de plástico e pompons de papel laminado, uma estátua do beato cearense figura solene num altar improvisado sobre o rack onde, nos dias comuns, é a televisão que costuma ser venerada. Na cozinha, as mulheres catam feijão e temperam nacos de carneiro. Aproveitando uma brecha no receptivo, Dona Zefa leva um balde d’água à pocilga, para enlamear um pouco seus porcos.

— A gente aqui comendo e bebendo, e os bichinho morrendo de sede.

Enquanto isso, no terreiro, depois de expor suas guloseimas no porta-malas aberto do carro, o vendedor de doces organiza as crianças da comunidade em fila, e então distribui, como doação, dois caramelos e um piparote por cabeça. Na barraca de lona ao lado, arriscando seus centavos, os moleques mais certeiros se lambuzam com chocolates derretidos, que eles derrubam do tabuleiro com a espingardinha de pressão. O chão vai acumulando os despojos do festejo: papéis de bala, pacotes de bolacha recheada, palitos de picolé, latas de refrigerante. Exaltados em meio àquela alegria turbinada com aromas artificiais e açúcar refinado, dois meninos se engalfinham. Agreste, o corpinho a corpinho se acirra. Até que Dona Zefa aparece brandindo uma vassoura, e a rinha logo dispersa. Com a paz reinando novamente em seu quintal, a senhora irrequieta refaz o rabo de cavalo com uma presilha rosa. Ajeita o vestido florido. E lembra da própria infância:

— Eu era muito espevitada. Muito dançarina. Chamava mesmo a atenção. Rapaz chegasse eu já perguntava quem era. O povo chamava de doida. Era estrela mesmo que me iluminava.

Entre seus folguedos pueris, a parteira precoce e rezadeirinha já experiente àquela altura, depois de autoiniciar-se nos assuntos dos espíritos, adiantou-se também nos compromissos de mulher: aos onze anos, Zefa estava de casamento marcado.

Depois de assentir ao pedido de Antonio Piaba, o noivo, Seu Maneca Bengo não poupou vintém para as bodas da filha. Por conta do carisma irresistível e da honestidade inviolável, mouco e cego de um olho, o pai de Zefa era muito bem visto na praça. Fazendo uso do bom nome, Seu Maneca amealhou o crédito de que dispunha nas bodegas de Poço Redondo, além de investir seus próprios porcos e criações no esposório da caçula temporã, que Dona Gabriela parira aos 50 anos, depois dos outros seis. Às vésperas do evento, sobravam farturas. Os preparativos alvoroçavam a família, a comunidade toda.

Ia haver a festa.

A noivinha, entretanto, matutava seus poréns. Os recatados encontros pré-nupciais só lhe reforçavam o pressentimento de que o futuro marido talvez fosse um sujeito apagado demais para fazer par com sua estrela. Depois de meses de namoro, sem ousadia nem para pegar-lhe a mão, Antonio Piaba só conversava de longe, insistia nas solenidades, e seguia tratando a menina por “Dona Zefa”. O tempo passava, e a intimidade do casal empatava de crescer. Do alto da experiência, a mãe e as comadres aconselhavam paciência. Um tanto contrariada, Zefa foi levando.

Até o dia da cerimônia.

O caso antigo de Frebona, índia brava que foi caçada a dentes de cachorro e depois amansada para amasiar-se com Francisco, talvez tenha fervido no sangue da menina. Duas gerações mais tarde, sua ancestralidade mostrava as garras outra vez, resistindo a ser domada. O fato é que, diante das incompatibilidades com o noivo, como se vingasse a história da avó indígena, a neta acaboclada renegou o casamento a contragosto. Assim que chegou à porta da capela cheia e toda enfeitada, Zefa desenlaçou-se do braço do pai. Virou as costas para o vigário atônito. E deixou Antonio Piaba para sempre ali, sozinho, no altar.

— Na hora eu não quis. Vim m’embora. Foi lindo.

Aproveitando o ensejo, ainda sob a poeira levantada pela surpresa geral, outro pretendente externou em público seu amor pela noiva arredia, e propôs-se a substituir o noivo rejeitado. Zefa foi taxativa:

— Coisa oferecida ou tá podre ou tá moída. Essa semana eu não caso com ninguém.

Além de recusar o novo compromisso, a menina devolveu todos os presentes que havia recebido dos convidados. Sem outro meio diante da turra da filha, Seu Maneca Bengo considerou o investimento já comprometido na festa armada. Fez as contas. E achou por bem reverter o prejuízo e a decepção numa inesquecível alegria. Foram dois dias e uma noite de um arrasta-pé sem precedentes. Zefa varou o tempo, sem almoçar nem jantar, só dançando.

— Como se fosse mesmo uma despedida.

Poucos meses depois, enfim, apareceria o eleito. Voltando de uma festa de Santo Antonio, com o facheiro aceso abrindo o caminho noturno, Zefa contou primeiro à Dona Gabriela:

— Mãe, tô namorando com Alexandre. Parece que vou casar com ele.

— Você, minha filha, tenha juízo! Não tem nem um ano que você fez aquela doidiça!

O pai, por outro lado, deixou-se amaciar pelas juras de Zefa, que demonstrava um agrado sincero pelo moço, e se comprometia a não repetir o rompante prévio. Assim, combinou-se o enlace entre a menina e o caçula do velho Manoel Rosena, quilombola de estirpe. Seu Maneca só exigiu celeridade:

— Que rapaz na minha casa não alisa banco.

Josefa Maria da Silva contava doze anos e três meses quando saiu da casa dos pais e foi morar com Alexandre Bispo dos Santos numa tapera de palha, aos pés da Serra da Guia.

(Nota fuxiqueira: um ano após ser largado no altar, Antonio Piaba casou-se com uma prima de Zefa. “Esse homem batia tanto nessa mulher”, dizem certas línguas, destiladas à boca miúda. Hoje, seis décadas depois daquele épico pé na bunda, viúvo, Piaba às vezes aparece na casa de Dona Zefa. Senta para almoçar com Alexandre, com quem mantém uma relação morna. Mas não deseja nem bom-dia à ex-noiva).

Recém instalados no ninho rústico, o novo casal logo multiplicou-se à família. Bem combinados como parelha, durante o período inicial do matrimônio, Zefa e Alexandre tiveram de resistir a uma penúria renhida. Com a espingarda a tiracolo, o marido subia as ladeiras pedregosas da Serra à caça de rolinhas, preás e tatus, enquanto a esposa voltava com um pouco de água do Boqueirão para reidratar o choro dos filhos pequenos, que ficavam esperando na rede.

— Sofri sete anos de fome. Da vista azular.

Então, como quase todo homem da comunidade, Alexandre foi trabalhar alugado. No domingo, ele saía a pé. Cumpria a lida. E só voltava no sábado, trazendo o dinheiro com que a família comeria durante a semana seguinte, na sua ausência. Com alguma frequência, ao chegar em casa, Alexandre constatava que o salário da vez tinha mais uma boca para alimentar: à revelia do marido, além dos rebentos naturais do casal, Zefa não resistia ao desamparo alheio e vira e mexe voltava de algum dos inúmeros partos que assistia trazendo consigo para a palhoça uma criança mais pobre que as suas. Ao todo, foram vinte e três filhos: cinco legítimos e dezoito de criação. Com recursos estagnados para suprir a prole inflacionária, era a fé de Zefa que multiplicava as latas de leite Glória. Por algum milagre, a conta sempre fechava.

— Deus dava o total.

Em agradecimento às pindaíbas superadas e às graças alcançadas, Dona Zefa da Guia há muitos anos faz questão de celebrar regularmente sua devoção. A novena ao Padre Cícero é um destes compromissos sagrados. Já é uma tradição: depois do almoço farto servido aos convivas (“As festa de pai era como essa minha aí: comestivo mesmo”), e quando o sol começa a alaranjar, os rojões assustam os jumentos, que fogem no trote, enquanto a anfitriã exorta os romeiros ao calvário:

— Tá na hora, gente! Bora subir!

A estátua do Padim é então retirada do altar na sala e vem para fora junto a uma cruz de madeira, embrulhada com crepom rosa. Carregando seus talismãs, a procissão mete os pés no dorso da Serra da Guia.

Encontro lugar num vão da marcha e subo entre os sertanejos, arfando pela trilha estreita, íngreme e sinuosa. Agarrado a galhos secos, tomo impulsos morro acima. Minhas canelas roçam espinhos, enquanto vacilo sobre pedras soltas. A certa altura, sou ultrapassado por um rapaz ágil, apesar de seus passos tortos: com os pés recurvados para dentro, ele tem pressa para alcançar o alto e agradecer o milagre, intermediado pelas rezas de Dona Zefa, que o libertou da cadeira de rodas. Adiante, um senhor de 88 anos escorrega numa lajota empoeirada, ganhando escoriações no antebraço. Para não sucumbir ao mal-estar que começa a lhe chacoalhar o corpo, o velho engole um comprimido, aproveitando o gole d’água que lhe oferecem. Escorado no remédio para hipertensão e nos ombros dos mais jovens, ele insiste em subir. Até que, enfim, a pirambeira perde seu ímpeto e a procissão alcança seu destino: uma capelinha azul, avizinhada do céu.

Lá em cima, os romeiros tiram selfies ao lado do rapaz dos passos tortos que viera à minha frente, tratado por “aleijadinho” e congratulado por sua proeza. Enquanto isso, quem termina de chegar, repetindo o gesto de seus antecessores, planta ao lado do templo celeste alguma pedra retirada do árduo caminho até o topo. Mineral sobre mineral, há mais de trinta anos, a tradição tem feito crescer um morrote, saliência inventada pelos devotos, uma discreta corcova no cume da Serra.

A fé cria montanhas.

E assim, quando os últimos concluem a subida (entre os quais o tal senhor, hipertenso e resiliente), Dona Zefa prossegue a cerimônia, com o Padre Cícero no colo:

— Nós agradecemo a Deus e ao Poder, pelo sol que nasce e a lua que gira. O brilho das estrela. A sombra das nuvem. E o abalo do vento.

Encerrada a prece conjunta, ao Amém do Pai-Nosso, os romeiros acompanhamos o sol, que também desce.

Antonio Lino (texto) e Araquém Alcântara (fotos)

Antonio Lino (texto) e Araquém Alcântara (fotos)

Antonio Lino é escritor. Nasceu em São Paulo, em 1978. Trabalha há 15 anos como redator independente para organizações da sociedade civil e para o governo, escrevendo sobre temas como políticas públicas de juventude, meio ambiente e cultura popular. Durante um ano e três meses, morou numa Kombi e percorreu mais de trinta mil quilômetros pelo Brasil. Em 2011, publicou Encaramujado, livro que reúne suas crônicas de viagem. Atualmente, depois de uma temporada de dez meses na África, o autor prepara um romance sobre a história da Libéria. Mais informações em www.antoniolino.com.br.

Araquém Alcântara nasceu em Florianópolis em 1951 e é um dos mais importantes fotógrafos em atuação no país. Desde 1970, se dedica integralmente à documentação da natureza e do povo brasileiro. É autor de mais de quarenta livros, como Terra Brasil (1997), Brasileiros (2004), Amazônia (2005), Bichos do Brasil (2008) e Sertão sem fim (2009). Premiado nacional e internacionalmente, já teve mais de setenta exposições individuais. Priorizando a fotografia como expressão plástica e instrumento de transformação social, é um dos mais combativos artistas em defesa do patrimônio natural do país. Mais informações em www.araquem.com.br.