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O Depois é uma Onda: Quem Fui e Quem Sou Após Morar na Amazônia

"E naquele momento eu agradeci ao universo pela oportunidade única de ter vivido outras experiências, por ter conhecido pessoas que pensam diferente de mim, que possuem outros valores, que fazem da floresta a sua vida".

Por Maria Fernanda Ribeiro |  04 de outubro de 2017

O que você vai fazer quando voltar de lá? O lá era a Amazônia. E essa foi a pergunta que mais ouvi quando resolvi deixar a vida em São Paulo com tudo dentro – carreira, amigos, família, amores – para viajar durante um ano para conhecer e compartilhar as histórias dos povos da floresta. Índios, quilombolas, ribeirinhos, pescadores. Minha intenção era aprender sobre quem são essas pessoas que vivem fora dos grandes centros urbanos. Como se relacionam, como lidam com o dinheiro, como se organizam, o que pensam da gente do lado de cá.

Acre, Rondônia, Amazonas, Amapá e Pará foram os estados por onde passei. Conheci nove etnias indígenas, duas comunidades quilombolas, reservas extrativistas, ilhas de pescadores, produtores de açaí. Foram mais de 400 horas em barcos e canoas por rios de águas com imensidão sem fim e outros cuja travessia de uma margem a outra poderia ser feita à pé com o curso caudaloso tocando as canelas. Chuva, muita chuva. Sol, muito sol. Mosquitos e carrapatos. Mas mais do que uma natureza úmida, sufocante e terna, conheci gente. Gente de verdade. Gentil e solidária. Que divide o pouco e o nada que possui. Gente com histórias capazes de fazer as lágrimas caírem feito cachoeira em poucos minutos de conversa.

E o que você vai fazer quando voltar de lá? Sei lá, eu respondia. Essa era uma questão que as pessoas me faziam, mas que eu mesma não havia parado um único minuto sequer para refletir. Como saber a resposta se eu nem mesmo tinha começado a viver aquela que seria a maior aventura da minha vida? A maior aventura e o maior aprendizado. A maior jornada de autoconhecimento que eu poderia ter proporcionado a mim ao estourar definitivamente aquela bolha na qual eu estava inserida e que me fazia acreditar que o meu planeta era o único que girava ao redor do Sol.

Percebi, então, que para a maioria das pessoas deixar o próprio mundo só é possível se houver uma resposta para o depois. E, desculpe decepcioná-los, mas não há uma resposta. É como se você tivesse planejado surfar pela manhã e soubesse de antemão como chegariam as próximas vinte, trinta ondas. Talvez nem saísse de casa para cair no mar aquele dia achando que não valeria a pena. E talvez você perdesse a maior onda da sua vida.

De alguns ouvi também que era uma pessoa muito corajosa. Abandonar tudo assim e ir sozinha para o meio da floresta. Onde já se viu? Mas eu não pensava se tratar de coragem. Para mim não havia outro caminho a ser seguido. Naquele momento era como se só houvesse apenas uma trilha, uma porta e não há que se pensar em coragem quando não há outro lugar para ir. Era isso ou ficar parada eternamente na placa do Siga em Frente esperando alguém me resgatar pela mão.

Na última semana antes de retornar para São Paulo eu estava no Acre e participava de um ritual indígena em uma aldeia formada em sua essência por mulheres. Era uma festa linda, que varava a madrugada, no meio da floresta amazônica. Estava sentada no chão de terra e uma fogueira iluminava o lugar. A música cantada na língua nativa envolvia o ambiente junto com os instrumentos. Homens e mulheres bailavam com seus cocares de pena, roupas coloridas e pinturas de urucum pedindo a proteção dos ancestrais. O céu estrelado exibia suas constelações como se estivessem expostos em quadros em uma galeria de arte.

E naquele momento eu agradeci ao universo pela oportunidade única de ter vivido outras experiências, por ter conhecido pessoas que pensam diferente de mim, que possuem outros valores, que fazem da floresta a sua vida. E conhecer sempre outras realidades seria a resposta para o meu depois. Ouvir histórias e saber o que cada um carrega na sua bagagem.

O depois então chegou e continuo a me descobrir como pessoa, como mulher, como ser humano, como a jornalista que um dia deixou tudo para mergulhar numa jornada floresta adentro. E hoje sei que talvez a única resposta plausível para a pergunta dos amigos era a de que não haveria depois para aquela Maria Fernanda, pois eu nunca mais voltaria a ser a mesma após surfar a maior onda de todos os tempos nesse novo planeta que agora habito.

 

 

Maria Fernanda Ribeiro

Maria Fernanda Ribeiro

Maria Fernanda é jornalista e rodou um ano pela Amazônia para conhecer e compartilhar as histórias do povos da floresta. Nascida em Bauru, interior do estado de São Paulo, morava em São Paulo antes de iniciar a jornada floresta adentro. Agora mantém o blog Eu na Floresta no Estadão e tentar arrumar tempo para escrever um livro e está à procura de uma casa com quintal para ter sua própria horta e onde possa plantar os amigos, os livros e nada mais.