Durante a graduação participei de um estágio na universidade que se tratava de um projeto de inclusão digital para crianças da comunidade do entorno da instituição. Isso foi mais uma escala num longo caminho dedicado a entender melhor a relação entre humanos e tecnologia que sigo até hoje, e em meio a tantos autores renomados que me inspiram, uma frase de uma menina de oito anos me marcaria para o resto da vida.
O projeto consistia em oficinas elaboradas para apresentar algumas possibilidades do computador, e usá-lo como suporte ao ajudar as crianças a desenvolverem algumas habilidades, relativas a essa ferramenta ou não. Tive a oportunidade de presenciar muitos primeiros contatos entre criança e computador. Uso esse artefato há tanto tempo que já se tornou algo naturalizado. E por mais que eu esteja sempre questionando essa relação, assim como tudo na vida, há sempre algo que o hábito mascara.
Num mundo em que bebês de 6 meses já exploram dispositivos móveis, presenciar o encontro de uma criança com o digital pela primeira vez é uma oportunidade cada vez mais rara. Ver a construção e tradução de funcionamentos como o da tela, da internet ou do mouse (na época touchscreen, inclusive em celulares era raridade) me fazia redescobrir a realidade. A abstração necessária para entender conceitos de tempo e espaço que a tecnologia requer era um desafio para aquelas cabecinhas que mal entendiam como o carteiro sabia como entregar cartas em suas casas.
Ao fim de cada oficina fazíamos uma roda de conversa para entender um pouco mais sobre as experiências das crianças. Numa dessas ocasiões, uma menina de oitos anos disse: “o que eu mais gosto do computador é que ele não mostra que a gente errou”. Quando foi pedido que ela falasse mais, completou: “no caderno, a gente passa a borracha, escreve por cima, mas fica a marca. A gente vê que errou ali, onde fica borrado. No computador eu apago, escrevo, e ele não fica me lembrando de onde errei. ”
Na hora foi mais uma resposta entre tantas outras descobertas. Uma resposta que a complexidade eu só começaria a compreender depois de anos refletindo repetidamente sobre esse breve discurso. A sabedoria contida naquela frase, disfarçada talvez por uma inocência ou falta de clareza, é algo que falta em muitos adultos. Aquela menina de oito anos foi o arauto de uma tendência cada vez mais forte.
Quando um dispositivo é responsável por filtrar a maioria do acesso que temos de nossa realidade, passamos a nos relacionar com ela de uma forma diferente. Assim como uma lente monocromática deixaria tudo azul, roxo ou vermelho, através de nossas telas acessamos um mundo tão efêmero quanto a taxa de atualização do display. Tudo se desmancha ao toque dos dedos, sem rastros, sem memória, sem afeto de fato. Algo novo surge, sem história, um pop-up que difunde a atenção e some ao toque de recolher de alguns algoritmos.
Como estamos educando nossas crianças para terem tanta aversão ao erro e colocarem um peso tão grande na lembrança de uma falha? Que adultos somos quando bloqueamos e deletamos alguém por uma mera discordância? Nossos erros são oportunidades de aprendizagem, são o mapa da mina de nossas experiências. Errar é preciso, é necessário. Uma vida linear, sem desvios ou tropeços, não só inexiste como não deveria ser desejável. Mas não só no erro avesso ao acerto, mas errar no sentido de vagar, sem rumo, se perder. Errar não é preciso, é incerto. Quando erramos podemos inventar, criar, e assim, crescer. Se seguimos tudo à risca, se fazemos tudo “certo”, só reproduzimos, não há nada de novo. Os caminhos já foram programados pelo pessoal da TI e do marketing, e a meta é uma vida asséptica.
Me angustia pensar no que podemos esperar de sujeitos que têm informações disponíveis em tempo real e por isso não retém nada. Vazios pelo acesso constante a dados, pessoas, definições e roteiros. Quem somos quando estamos offline sem todos aqueles dados da rede? E quando não lembramos do erro, quando não fica sequer uma marca, quem somos? E se nosso conteúdo é deletado e reposto feito cache, o que estamos levando para a vida? O que fica quando não temos mais nossos borrões no caderno?
Foto: Patrícia Nogueira