O Infame bateu um papo com o fotógrafo brasileiro Fábio Nascimento. Nessa série feita na Amazônia, ele retrata a comunidade indígena Munduruk, no rio Tapajós no Pará, ameaçada pela construção de um complexo de hidrelétricas planejado pelo Governo Federal. A forma como a conversa aconteceu diz muito sobre a vida e a atividade profissional do Fábio: ele nos respondeu por e-mail, enquanto estava em um navio no Ártico, trabalhando em parceria com o Greenpeace, próximo à plataforma de petróleo mais ao norte do mundo.
1 – Conte um pouco sobre a tua história antes de começar a trabalhar com fotografia e audiovisual: onde nasceu? O que estudou? Como era sua família? etc.
Sou mineiro, da cidade de Ipatinga, onde nasci e cresci entre uma cidade industrial e um pequeno sítio próximo. Talvez estes sejam dois pontos importantes na minha formação, entre entender a realidade operária dos meus pais e a camponesa dos meus avós maternos.
Aos 17 anos me mudei para o sul de Minas, Juiz de Fora, onde comecei a estudar jornalismo e comunicação social na Universidade Federal de Juiz de Fora; foi lá onde comecei a ter algum contato mais real com filmes, fotografia, arte, pensamento político, pelos quais sou muito grato aos meus colegas de universidade; e com um tipo de dinâmica de convívio interdisciplinar que está cada vez mais raro nas esferas de estudo.
2) Por que se interessou por fotografia? Quais são as principais influências que teve ao longo da carreira?
Acho que a primeira coisa que me despertou um interesse pela fotografia foram dois pequenos livros do Pierre Verger, que não sei muito bem como foram parar nas minhas mãos, quando eu tinha uns 14 anos. Um sobre crianças e outro sobre mulheres, ambos fazendo um paralelo entre o Benin e a Bahia, certamente extratos da obra publicada em colaboração com Edgar Morin, que só fui conhecer muitos anos depois.
Vendo aquelas fotos, foi a primeira vez que pensei em como seria estar atrás da câmera, me perguntando quantas coisas mais ele deve ter visto enquanto produzia aquelas imagens.
Certamente a fotografia ligada à antropologia me marcou muito, assim como os fotógrafos humanistas me marcaram num primeiro momento. Quando conheci o trabalho do Raymond Depardon tive um outro momento de muita influência também, talvez pelo fato de ser fotógrafo e cineasta, por filmar coisas simples, pela relação familiar com o campesinato que ele tem, pela maneira simples de produzir e o comprometimento com o real diante da câmera.
Muitas vezes a influência que me toca não é somente pela obra produzida, mas muito também pela maneira como é feita. E, por isso, muitas vezes não vem da fotografia ou cinema. Me espelho em músicos, pela maneira como trabalham, gosto da ideia de parcerias, colaborações. Quase todos os filmes que fiz, foram junto com alguém, muitas vezes pessoas que não são necessariamente do cinema ou das artes. Gosto disso e acho que todo mundo aprende muito no processo.
3) O que mais te inspira como fotógrafo? O que gosta de fotografar e qual mensagem/sensação/reação você busca causar?
Vejo a fotografia, assim como o cinema, como um meio, um caminho pra tocar, informar, sensibilizar. Tenho pouca relação entre o que eu faço e a arte propriamente. Acredito na fotografia como ferramenta política, social e sensitiva.
4) Você pode nos falar um pouco mais sobre o estilo do seu trabalho? Como você foi se aproximando das causas ambientais?
Desde o começo me interessei por esses temas, por um caminho pessoal e natural. Talvez pelos valores aprendidos na infância, pelos universos que cresci vendo.
Quando estudava jornalismo na UFJF foi quando tive a oportunidade de participar de um primeiro documentário, que foi junto ao MST. Aos 18 anos eu estava filmando a realidade de um assentamento, o mais antigo do movimento, vendo de dentro como funcionava. É muito forte quando você vem de um universo com pouca consciência política e de repente vê aquilo. É transformador. Foi um impacto imediato na minha vida e, por isso, sou grato à Flavia Vilela e Felipe Hutter, hoje grandes profissionais do audiovisual no país, que na época me levaram pra essa primeira aventura.
Meu primeiro filme foi sobre um massacre de operários que aconteceu na minha cidade natal, pouco antes do golpe militar de 1964. Era um dos assuntos mais complicados pra mim naquela época. Talvez fazer estes filmes sejam maneiras de aprender mais.
Depois de viver 6 anos fora do Brasil, estudando cinema e documentário na França, quis voltar pra conhecer o que não conhecia, e sobretudo a Amazônia. Ir lá pela primeira vez, a convite do Museu do Índio, através do amigo Thiago Oliveira, antropólogo, foi uma nova porta que se abria.
Trabalhar com indígenas, documentar a realidade profunda e complexa dos povos da floresta, leva invariavelmente a adquirir um grande consciente socioambiental, respeitar e se engajar em uma batalha de sobrevivência, preservação, respeito. A Amazônia me deu e dá muitos aprendizados. Entender conexão e continuidade é um deles.
5) Nos conte um pouco mais sobre o contexto por trás da série “Tapajós: A luta pelo rio” e as inspirações que te guiaram (ou foram geradas) com esse trabalho?
Por volta de 2013, depois de estar fazendo alguns trabalhos com comunidades indígenas, o Greenpeace me convidou a iniciar um projeto de longo prazo junto com eles, criando uma relação com os Munduruku uma etnia de aproximadamente 14 mil pessoas vivendo às margens do rio Tapajós e seus afluentes.
Foi um mergulho profundo naquela realidade, e pela primeira vez eu estava vendo de perto um processo de luta e resistência contra algo que ainda estava por vir, contra uma ameaça que paira sobre os povos da Amazônia, que é a invasão por grandes empreendimentos. Quando você começar a ver de perto o modo de vida destes povos, a saber como comem, como se deslocam, como moram, como dormem, o que os fazem felizes, do que eles têm medo, você percebe que a realidade urbana, que foi a que cresci, não te faz tão diferente como pessoa. Os medos e os desejos são, na sua essência, os mesmos. Mas você vê que os modos de consumo e produção podem não ser compatíveis, podem ser muito destrutivos. A relação de um Munduruku com o seu rio Tapajós é muito mais profunda, complexa e interdependentes do que a minha com meu bairro, mas talvez pra que todo o concreto, energia e bens existam no meu bairro, o rio dele pode estar ameaçado por uma barragem hidrelétrica. Entender essa profunda relação entre todos nós, nossos modos de vida e consumo, e perceber como tudo está tão conectado, é uma das principais motivações e inspirações que levo comigo para realizar e este e a maioria dos trabalhos que produzo.
Escrevo estas respostas a bordo de um navio no Ártico, próximo à plataforma de petróleo mais ao norte do mundo. Esse petróleo extraído aqui é ligado ao plástico da câmera que uso, ao combustível dos meios de transporte que uso, com o derretimento do polo oposto do planeta, e à tantas mudanças climáticas que a gente percebe em qualquer canto do mundo.
Talvez eu siga fazendo fotos e filmes por isso, pra tentar de alguma forma, por menor que seja, contribuir na transmissão dessas mensagens, porque vejo que existe uma barreira no nosso mundo de hoje: a maneira como produzimos e consumidos é extremamente globalizada, conectada, porém, nossa capacidade de percepção é muito limitada, é local. É difícil pra gente entender e aceitar que nosso modo de consumo pode atrapalhar, desabrigar, desnutrir ou matar alguém em outra parte do mundo. Mas é importante que a gente veja isso, pois acredito que certamente nós podemos fazer melhor do que temos feito até aqui, e essa é uma missão incontornável.
6) Você acredita que seu trabalho, em alguma forma, tem algo a ver com a missão do Infame?
Vivemos hoje um excesso de informação, mas talvez uma escassez de sensibilização.
Talvez a fotografia e o cinema possam ajudar um pouco nisso, contando as histórias que são pouco contadas, levando às pessoas informações pouco difundidas e fazendo perceber que a conexão entre o que somos, o que produzimos, como consumimos, é uma rede muito mais conectada do que temos o hábito de pensar.