Pense que você vai viajar, quais coisas não podem faltar na mala?
Então pense que a bagagem é limitada, você vai estar fora por dois meses e não pode levar tantas coisas assim. Dificulta, não é?
Agora, imagine que você não pode levar nada com um volume que indique uma viagem. Imagine que você não sabe muito bem como é o destino. Imagine que você nem sabe se volta um dia para casa. Qual seria a coisa mais importante que você levaria?
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Essa situação, que para nós é um exercício de imaginação, é uma experiência concreta pela qual passaram (e passam) mais de um milhão de pessoas refugiadas que foram obrigadas a fugir da Síria. Para sua perigosa jornada puderam levar apenas coisas que não chamassem atenção, como se estivessem saindo para um passeio. Com tal limitação, levaram os objetos que consideravam de maior importância.
Este é o tema do projeto The most important thing (“A coisa mais importante”), clicado pelo fotógrafo americano Brian Sokol. Depois de registrar pessoas refugiadas no Sudão, a nova etapa traz gente que teve de abandonar seus lares na Síria em meio ao caos. Em preto e branco, as imagens retratam sujeitos com seus objetos mais significativos. Lembranças, artigos de sobrevivência, símbolos de fé. O projeto explicitamente conta histórias pessoais, mas não podemos deixar passar desapercebido que também é um relato de histórias da humanidade.
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Por meio de artefatos, nossa espécie cristaliza e potencializa nossas culturas. É por meio de nossos objetos (concretos ou não) que “tornamos nossa sociedade durável”, diria Latour. Mas como todo o desenvolvimento é contraditório, nossas montam nosso mundo artificial, mas impregnadas de perversidade, também destroem, e o fazem em massa. Quando a potencialização é do que a humanidade tem de pior, conflitos tornam-se guerras, e guerras geram vítimas como as retratadas por Sokol. As pessoas refugiadas nas fotos são exemplo dessa relação contraditória com nossas coisas, que nos aniquilam e nos servem de suporte.
O pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott propôs o conceito de “objeto transicional”, para mostrar que nos primeiros meses de vida utilizamos instrumentos para diminuir nossa ansiedade e frustração quando a realidade se impõe, destruindo nossa ilusão de onipotência. Ursinhos, bonecas, cobertores, canções, e outras “naninhas” são importantes para nos dar segurança frente ao desconhecido, inclusive em idade adulta. São âncoras nos mares tempestuosos que atravessamos, fazem parte de nossa identidade, ainda mais numa sociedade consumista.
Vivemos imersos em nossas coisas, acessamos novas realidades com sua ajuda, somos outras pessoas com elas e nem sempre nos damos conta. Para entender melhor qual a importância de um objeto em sua vida, pense no que seria necessário realizar para ter os mesmos resultados caso ele não existisse. Você teria os mesmos hábitos? Consumiria as mesmas coisas? Conversaria dos mesmos assuntos? Teria as mesmas atitudes? Imagine como seria para você desnudar-se de sua casa, carro, celular, computador, livros, roupas, adereços. Imagine a violência de ter de fazer isso sem ser por iniciativa própria. Imagine o esforço de se reconstruir.
É comum vermos os artefatos como úteis, estéticos, necessários ou supérfluos, mas raramente os vemos como companhias em nossas vidas emocionais ou gatilhos mentais. Nossas coisas nos remetem à ludicidade, desejo, disciplina, história, luto, memória, divindade, transições e uma gama enorme de aspectos que compõem nossa existência como homo sapiens. Os objetos nas fotos do projeto vão além de seu poder instrumental e se apresentam como parceiros de experiências de vida.
Ao apresentar pessoas refugiadas e suas coisas, Sokol chama atenção para um dos fundamentos do que é ser humano: nossa relação com objetos. Nisso, ele mostra a humanidade nesses sujeitos, que geralmente são considerados apenas estatísticas. Com o apoio da ONU, a ideia é sensibilizaras as pessoas sobre a situação precária que atinge diversas famílias, vítimas da barbárie em diferentes partes do mundo.
É um trabalho belíssimo, que vale a pena conferir. Enquanto isso, fica aqui uma pergunta:
Qual a coisa mais importante para a humanidade?