Nunca fui fã da banda inglesa Bush, mas lembro que a letra da música “Little Things”, de 1995, fez com que eu refletisse muito durante minha adolescência. “It’s the little things that kill”, dizia o seu refrão. Não foram poucos os minutos que gastei pensando sobre isso. As pequenas coisas matam de verdade? Eu não sabia responder. Ali comecei a suspeitar que sim.
Todo mundo tem medo de leão, de metralhadora ou de tsunami, mas dificilmente você vai morrer por causa de um deles. A morte é um bicho econômico, pragmático, que prefere matar com armas comuns, aquelas que estão diariamente ao seu alcance. Câncer? AVC? Carros desgovernados? Sim, esses aí matam bastante, mas eu diria que as tais coisas pequenas talvez matem ainda mais. E para matar, não precisam nem fazer morrer. Conseguem matar deixando vivo. Uma morte tipo-B que não se contenta só em matar. Sádica, mata em prestações, parcelando e prolongando essa coisa tão popular que é o morrer.
Trilheiros de verdade têm medo de morrer no Everest ou no Himalaia. Para mim, naquele dia de agosto, uma trilha supostamente segura e bem sinalizada de apenas 13 quilômetros no Parque Nacional na Chapada dos Veadeiros já era suficiente. Não estou aqui para enganar ninguém: eu estava com medo.
Saí da pousada sozinho pouco antes das 8 da manhã. Meus amigos, muito mais trilheiros do que eu, só chegariam durante a noite. Fui o segundo a assinar o livro de visitas do parque, o que me fez pensar que se acelerasse o passo talvez tivesse a companhia daquele outro madrugador que chegara um pouco antes de mim. Também assinei a declaração de que me responsabilizava pela minha vida, provavelmente uma das declarações mais pretensiosas que um ser humano será obrigado a assinar ao longo da sua vida. Assinei sem ler, tentando me convencer de que eu era mais forte do que a insolação, as cobras, as trombas d’água e os penhascos espalhados ali dentro. Depois assisti ao vídeo com dicas de segurança e finalmente comecei a andar.
“E aí, tem certeza que não preciso contratar um guia profissional?”. Fiz essa pergunta para muitos locais no dia anterior. A cada quatro que diziam dando risada sem pestanejar que “não”, vinha um pessimista que franzia a testa, dava uma respirada e dizia expressamente (ou ao menos dava a entender) que “sim”. E logo em seguida contava as histórias dos fulanos que entraram e nunca mais saíram do parque. Tinha o estudante, o empresário, o gringo: exemplos não faltavam.
As setas vermelhas tentavam indicar o caminho, mas de vez em quando ficavam tímidas com a presença dos visitantes e desapareciam. Fazia muito sol e precisei só de 15 minutos dentro da trilha para prometer a mim mesmo que compraria um boné assim que chegasse a São Paulo: erro número 1. Mais tarde parei para reforçar o protetor solar na base do pescoço e lembrei que o havia esquecido na cama: erro número 2. Pensei que esses eram problemas pequenos, bem menores do que cobras e trombas d’água, mas aí pensei mais um pouco e lembrei de um amigo meu dizendo que toda queda de avião esconde uma soma de diversos problemas pequenos. E então pude enxergar esses probleminhas somando-se uns aos outros e tive certeza que muitos daqueles fulanos mortos no parque também subestimaram cada um daqueles mesmos pequenos problemas no último dia das suas vidas.
Um boné. Talvez tivessem morrido só porque não tinham um boné. Um boné falsificado do New York Yankees de 20 contos vendido por um camelô do centro, que eles só não compraram porque suas namoradas disseram que o boné era feio pra cacete. Suas namoradas os mataram, concluí enquanto meus joelhos maltratados por anos de corridas sem fortalecimento muscular subiam e desciam os caminhos do Cerrado, em paralelo ao meu pensamento que subia e descia os caminhos da consciência, fazendo de tudo para impedir que o medo a dominasse.
Bom, não adiantou.
Veja bem, eu já disse que estava com medo, mas não disse que até aquele momento tinha consciência de que estava com medo, e uma coisa é bem diferente da outra. Nos filmes essa consciência surge em momentos em que algo especial acontece, mas na vida real às vezes ela surge assim do nada, sem nenhum gatilho que a dispare. Parei, olhei para o terreno seco e não pude mais negar: cara, tô me cagando de medo.
De vez em quando eu acelerava para fazer com que tudo passasse mais rápido, talvez como forma de alcançar o visitante número 1 do parque. Será que ele trouxe boné e protetor solar? Água eu tinha bastante, se fosse o caso até poderia emprestar.
Pensei nos meus pais. Quem pensa na morte e não pensa automaticamente nos pais bom sujeito não é. Vão dizer que estava exagerando e que as estatísticas desmentiam minha preocupação e que só um em não sei quantos milhares de visitantes morrem lá dentro. Eu não me importo, podem falar à vontade, vocês que debocham de mim são os mesmos que quebraram a cara quando debocharam dos fulanos desaparecidos naquele mesmo local no passado.
Pensando nos meus pais e totalmente ciente de que tinha medo, comecei a ouvir o barulho da água. Era a primeira cachoeira. As setas vermelhas sumiram mais uma vez e parei tentando entender para onde ir. Em seguida, ainda parado, um outro barulho novo, dessa vez de um grupo de umas 5 pessoas que vinha atrás de mim. Pronto, minha salvação, um verdadeiro deus ex machina. Parei de sentir medo, como se inocentemente acreditasse que aqueles desconhecidos andassem sempre com soro antiofídico a tiracolo ou fossem atrás de mim rio abaixo caso uma tromba d’água me levasse.
Sentei na pedra e comecei a tirar a roupa para nadar. Uma menina bonita do grupo passou ao meu lado e sorrimos um para o outro. Pensei que se um dia viéssemos a namorar eu jamais poderia admitir que aquele olhar, o mais sexy que eu era capaz de oferecer, era oferecido por um indefeso, um fraco diante de medos idiotas. O Bush estava certo: os pequenos medos matam. Vitorioso e sabendo disso, fui embora todo machão, com o dedo do meio em riste apontado para os fantasmas do medo que se escondiam naquela Chapada. Sei que em algum lugar eles diziam, ainda com o gostinho da derrota na boca: foi só uma batalha, a guerra ainda não acabou. E tinham razão. Não demorariam para contra-atacar com algum medo minúsculo, quase invisível de tão insignificante, e ainda assim capaz de me apresentar às minhas mais terríveis inseguranças.