Ela tem 90; ele, 92. Se conheceram numa instituição de longa permanência para idosos, tão longa quanto os dias que ainda virão: quem decide a próxima mudança já não são eles, mas o próprio tempo. Envelhecer, perceberam, também é decidir cada vez menos os rumos da própria vida e acumular, camada por camada, uma pilha sempre crescente de nunca mais. O corpo encolhe com o tempo, e corpo e tempo, antes ágeis, flexíveis, imensos de possibilidades, se dão as mãos enrijecidas para caber em lugares relativamente pequenos para vidas tão grandes.
Se o corpo fica todo menor, o tempo encolhe apenas de um lado, o da frente; o de trás se alonga em histórias, e foi escutando uma das tantas acumuladas por aqueles dois que alguém da instituição, uma enfermeira, a Fabiana, soube que ele e ela são corinthianos e adoravam assistir os jogos do seu time no estádio. Isso bem antes, quando nem se conheciam. A cada jogo na televisão, os dois revolviam sonhos recentes semeados pela vida antiga: ir de novo ao campo. Ela tinha tanta vontade de conhecer o Itaquerão. Este sonho, eles achavam, era mais um dos tantos na pilha crescente do nunca mais, e por trás da alegria do gol na tevê vinha a tristeza de saber que, tão de perto, jamais veriam seu time de novo.
Mas os sonhos às vezes têm o dom de misturar coisas, transformar passado em futuro, desempilhar os jamais que acumulamos, todos, ao longo da vida. A Fabiana deu um jeito de falar com alguém, que falou com alguém, que falou com alguém, que era a Angélica lá do marketing do Corinthians, que decidiu convidar aqueles dois, ela e ele, 90 e 92, para ir de novo ao estádio ver seu time jogar. De verdade.
Eles mal podiam crer. Uma semana antes, o sono já escapava da noite, e aquela tosse chata que a incomodava há tempos sumiu sem dar explicação. Eles sorriam mais que o habitual e falavam só entre eles do que iriam fazer, como se guardassem um segredo precioso e estivessem, cúmplices, prestes a fazer uma molecagem.
Ah, o tempo.
Depois de uma lenta contagem regressiva, chega o grande dia. Se vestem com cuidado, os melhores agasalhos, aqueles que, anos atrás, cobriam trajes de gala; mas abertos, para deixar ver a camisa do time. Nas mãos dela e dele, os anéis de festa. Ela, de batom, rímel e blush; ele, com o chapéu mais bonito.
Estão prontos. O brilho nos olhos. Vão de táxi, acompanhados pela Fabiana e pela Maria Laura, que foi quem me contou essa história. Ela, caminhando; ele, na cadeira de rodas. Ninguém se lembra do que conversam no caminho, se é que falam de alguma coisa.
Quando ela avista o Itaquerão, o brilho dos olhos aumenta. Sorri como toda aquela gente que converge para o estádio, templo pagão – para alguns, nem tão pagão assim. Os olhos dele se escondem por trás dos óculos escuros, agora postos; talvez quisesse guardar qualquer coisa só para si.
Quem já foi a um estádio lotado sabe o que é a emoção de chegar em seu lugar, olhar para o campo, olhar em volta. Aquilo vibra. Junto com toda a gente, ninguém tem idade. Muito menos quando o árbitro apita e a bola começa a rolar. Vai, Corinthians.
Eles, que achavam que nunca mais, comemoram como nunca; porque quando a impossibilidade se retrai e algo fadado à extinção acontece de novo, estar vivo se anuncia na maior potência. Ter nascido se replica – quanto mais distante no tempo o nascimento, maior o milagre da réplica.
Teria sido lindo mesmo se não houvesse gol. Mas há. Ele e ela ainda são pé quente. Como nos velhos tempos.
Foto: Maria Laura Barretto