Infame

“Talvez”: Ela Não Sabia Dançar

"Eu sempre digo não querendo dizer sim e às vezes digo sim querendo dizer não, depende do que o outro parece querer como resposta. Quando não consigo saber, digo talvez. Talvez é algo que digo bastante. Silêncio é algo que digo bastante".

Por Anna Carolina Francisco |  01 de agosto de 2017

Nunca aprendi a dançar. Fui sempre muito alta, sempre pouco coordenada, sempre excessivamente tímida. Você não. Você foi sempre muito alto, mais alto que eu, sempre pouco coordenado, assim como eu, mas nunca, nunca tímido. Você dança. Você dança aquela dança que é só sua dança e de mais ninguém. Os olhos fechados, o corpo agitando-se sob as pontas dos pés, expandindo-se além de sua pele e seu suor, esbarrando em quem dance em seu caminho porque aquela dança, aquela dança é só sua e de mais ninguém. E então eu, do outro lado da pista, eu encostada na parede preta do outro lado da pista, eu com um copo em uma mão e o canudo a misturar de novo a bebida já misturada na outra, eu que não sei mais o que fazer com as mãos além disso, eu encosto na parede do outro lado da pista e te vejo. Vejo seus movimentos como fotografias instantâneas feitas pelas luzes de gosto duvidoso que iluminam o cubículo preto e barulhento e sorrio. Sorrio e te invejo. Eu não danço. Até danço, mas não chega bem a ser um dançar, mais um movimentar de cabeça do que um agitar de braços, mais um inclinar de corpo do que uma sequência de passos. Perco músicas inteiras pedindo desculpas a todos em quem esbarro e até mesmo aos que esbarram em mim e inclusive aos que pisam em meus pés, tão expostos por essas sandálias que apertam e machucam os dedos, sempre mais preocupada em acertar do que dançar, em não incomodar do que dançar, mas ninguém ouve, ninguém ouve porque estão todos dançando as danças que são suas e de mais ninguém, porque estão todos ocupando seus espaços e os dos outros, todos expandindo seus corpos e seus suores. Ninguém nunca ouve. Quero ir embora, mas não digo nada. Você me pergunta se quero ir embora e eu grito por cima da música alta que não. Você me pergunta se quero ir embora, mas sinto que você não quer então minto que não. Peço outra bebida para ter o que fazer com as mãos e volto a encostar na parede preta enquanto te vejo e me julgo por ter dito não querendo dizer sim. Eu sempre digo não querendo dizer sim e às vezes digo sim querendo dizer não, depende do que o outro parece querer como resposta. Quando não consigo saber, digo talvez. Talvez é algo que digo bastante. Silêncio é algo que digo bastante. Às vezes as palavras se debatem de um lado para o outro dentro de mim, se debatem do estômago ao fígado, se debatem do rim às vísceras, se debatem sem nunca encontrar a boca, a língua, a voz, as palavras se debatem como em um jogo de pinball eterno, acumulam-se rimadas, em separações silábicas, ostentando erros gramaticais, apunhalando-me por dentro, buscando uma fresta em meus poros, mas não há, não há nem fenda e nem fresta, na verdade quase não há poros, então me sinto explodir. Mas não explodo. Fico com aquelas palavras todas e com aquele silêncio todo. Você dança. Tomo o último gole da bebida que é aquele que não tem mais bebida só açúcar decantado no fundo do copo, só aquele resto de açúcar que resiste mesmo que você tenha passado as últimas sete músicas voltando a mexer a bebida com o canudo na falta do que fazer com as mãos. Você se aproxima e diz que quer ir embora. Você diz que quer ir embora, então vamos. Do lado de fora, o vento da madrugada anuncia a manhã seguinte e me encolho em mim mesma tentando cobrir-me de minha própria pele sem poros. Por alguns instantes existe silêncio fora e dentro. Voltamos para casa caminhando, os pés ainda doendo da sandália apertada, mas não digo nada. Você me abraça e diz que adora dançar. Eu sorrio. Mas eu, eu não digo nada.

Anna Carolina Francisco

Anna Carolina Francisco

Anna Carolina Francisco é roteirista de cinema e televisão. Há pouco começou a se aventurar pelos mares da literatura, esses tão impressionantes e, ao mesmo tempo, assustadores. Escreve para tentar dar sentido a isso que chamamos de existência, ainda que, ao sentido, falte lógica.