Infame

Desculpe, Tenho Nojo de Você: Moradores de Rua no Brasil dos Privilegiados

"Aos poucos fui me livrando da máscara da superioridade. Impossível livrar-se completamente. São décadas sendo doutrinado a acreditar que você é melhor do que aquele cara sentado na calçada. Comecei a sorrir mais à vontade. Cheguei mais perto. Sentei do lado. Encostei. Em que tipo de humanidade nos transformamos quando encostar torna-se algo a ser celebrado como uma vitória? Dei oi com beijinho na bochecha. Dei tchau com abraço. E poucas vezes na minha vida me senti tão vivo. Estávamos vivos. Para a minha surpresa, eles também. Como eles conseguem? Não sei. Saí de lá sem entender. Como eles conseguem?".

Por Matheus Machado |  19 de julho de 2017

Somos todos adultos, então vamos abandonar o discurso politicamente correto, parar de nos tratar como idiotas e começar a dar nomes corretos aos bois: estamos aqui para falar de nojo. Não adianta chamar de outra coisa: é nojo mesmo. Para piorar, é nojo de pessoas. Não é nojo de barata, de rato ou de outros animais culturalmente repugnantes. É um nojo difícil de perdoar, semelhante a outros sentimentos que já levaram à perseguição de povos, etnias, fiéis e outros grupos de inocentes. Enfim, é uma coisa abominável: é nojo de gente.

Quero acreditar que a maioria das pessoas já realizou algum tipo de ato benemérito na vida. A natureza e a frequência dessas atitudes boas, porém, varia bastante. Eu, por exemplo, fiz muito pouco. Três anos de trabalhos voluntários num centro para crianças órfãs, algumas aulas de português para analfabetos, poucas visitas a favelas para distribuir cestas básicas e um pouco (quase nada) de auxílio integracional a refugiados recém-chegados ao Brasil. Só isso, sem contar pequenas doações esparsas de dinheiro para causas que me pareciam legítimas, aquele gesto que vive em algum lugar entre a boa intenção e a limpeza automática de nossas consciências pesadas sem precisar sujar as mãos.

Viver num país com o (des)nível de distribuição de renda do Brasil é uma oportunidade única para enxergar miséria. O cérebro humano funciona de forma referencial, então é muito mais fácil enxergá-la em algumas de nossas capitais, onde somos ao mesmo tempo um pouco de Suíça e um pouco de Haiti, do que em países mais pobres que o nosso, onde a miséria foi, digamos, mais democratizada, até o ponto de camuflar-se com o ordinário. No Brasil a miséria grita, porque está sentada bem ao lado do luxo, ressaltando com intensidade fosforescente a linha que separa miseráveis de privilegiados.

Nesse contexto social, é difícil ignorar a desventura de alguns e o privilégio de outros brasileiros. E quando falamos sobre desprivilegiados, levando em conta os signos que melhor representam status em nossa sociedade (poder, dinheiro, estabilidade, etc.), seria natural concluir que a escória da humanidade seria formada por quem sequer têm onde morar. Você pode ser um drogado, um falido, um suicida, um louco ou um corno. Mas se tiver uma casa onde descansar, temos a sensação de que o fundo do poço ainda não te alcançou. Segundo a narrativa prevalecente deste mundo, guiada por noções essencialmente patrimoniais, a rua desumaniza uma pessoa, aproxima-a do selvagem, rouba-lhe a decência, desconecta-a do contrato social, aquele lá de Rosseau e Hobbes. Um processo parecido pelo qual passam ciborgues ou lobisomens: não importa quão humano ainda sejam os outros traços que te restam, não importa se ainda tem olhos, nariz, boca, cérebro ou coração, há algo em você que rompe o diálogo com o resto da sua espécie. Para os outros, ou melhor dizendo, para nós, a partir de agora você vale menos. Sua lágrima comove menos, seu sofrimento naturaliza-se, seu atropelamento ou assassinato na esquina torna-se apenas uma fatalidade (estatisticamente previsível, aliás).

No linguajar das ruas, nossa ignorância já começa por uma confusão comum entre dois termos: morador de rua e mendigo. “Mendigo é aquele que desistiu. Que já não tem mais esperança. Morador de rua somos nós aqui. Estamos na rua porque queremos ou porque precisamos. Mas a gente toma banho sempre que dá, troca de roupa, se vira para trabalhar. E sabemos que um dia, se Deus quiser, a gente ainda sai daqui”. Assim se define M., 38 anos, morador das ruas do Leblon, Rio de Janeiro, há cerca de dois anos.

Nos conhecemos durante uma ronda noturna do RUAS (Ronda Urbana de Amigos Solidários), uma organização sem fins lucrativos que ajuda a promover o bem-estar e a cidadania da população em situação de rua. Ouvi muito bem a respeito do projeto por amigos em comum e, uma semana depois, numa visita ao Rio, lá fui acompanhá-los em uma noite, na companhia da minha sócia.

A intenção era entrevistar moradores de rua e produzir um vídeo que ajudasse a desconstruir preconceitos. Não demorou para mais um pouco da nossa ignorância vir à tona: a maioria desses desabrigados prefere não posar para as câmeras alheias, seja por medo, vergonha ou privacidade. Lógico, faz sentido. Eu provavelmente faria o mesmo.

Fomos apresentados aos voluntários e nos dirigimos à praça em que distribuiríamos roupas e alimentos.

Observando sentados num canto e distantes de onde ocorria a maior parte do movimento, um novo aprendizado: aquilo ali não lembrava em nada a sensação de zoológico humano perceptível em outras ocasiões nas quais vi gente rica (ou de classe média, se preferir) ajudando gente pobre. Estou falando daquela estética do nós-aqui-eles-ali, do não-chega-tão-perto-aí-mano-porque-já-tô-fazendo-um-puta-favor-só-de-estar-aqui, do fica-na-boa-aí-que-logo-mais-você-já-ganha-sua-sopa-ou-cobertor. E é neste momento que volto a ele, o assunto pelo qual começamos lá atrás: o nojo.

O RUAS não é um projeto de esmolas. É um projeto cidadão, de longo prazo. São voluntários de um bairro regularmente ajudando (e sendo ajudados por) necessitados daquele mesmo bairro, com data e hora marcada. Ou seja, não se sustentaria se funcionasse na base do nojinho, porque aquelas pessoas ali, de ambos os lados dos muros do privilégio, encontram-se semanalmente. É fácil manter certa distância física e emocional de alguém que você nunca viu, mas a partir do momento em que seus encontros são marcados, a vida dela começa a te dizer respeito. Por isso, durante as rondas do RUAS, as pessoas se conhecem pelo nome, perguntam porque fulano faltou, como anda a sua família, se fulano voltou a falar com os pais, se o rolo com aquele menino vai ou não terminar em namoro. Abraçam-se, beijam-se, tocam-se, comem lado a lado, sentam no mesmo chão ou cobertor, fazem coisas que deveriam ser elementares ao ser humano.

Naquela praça vi jovens abastados e brancos (com exceção a apenas um voluntário) da zona sul carioca misturados com moradores de rua (negros, com aparente exceção de dois). Sua maior ou talvez única preocupação naquele momento era conviver. Não sejamos inocentes ou até sensacionalistas: é óbvio que, infelizmente, o apartheid social e racial separando ambos os grupos continuaria sendo gigantesco e provavelmente ninguém de um dos lados acabaria virando melhor amigo ou casando com alguém do outro, mas por mais ínfima que fosse aquela conquista, era o gol de honra da dignidade contra a injustiça. Sabíamos que àquela altura o placar já marcava uns vinte a zero contra nós, mas ali na minha frente a dignidade se recompunha dentro de campo, levantava a cabeça e dizia: esse gol é nosso, ninguém vai apagá-lo. Encarando a injustiça de frente, falava em tom provocativo, como uma má perdedora: foi gol, engula-o, hoje a gente ganhou, ganhamos só por alguns minutos, mas ganhamos. Foi gol da dignidade. E a praça toda comemorava. Copa do Mundo fora de época.

Nojo é repugnância por uma determinada coisa: pode ser cabelo na comida, um jato de catarro, CC de sovaco, cheiro de mijo, lesma na salada. É um mecanismo de defesa contra algo que leva seu desconforto a níveis insustentáveis, a ponto de você sair correndo, gritar, vomitar, fazer careta, dentre outros tipos de chilique. Sabendo disso, não me surpreende que, num país com certo fetiche por higiene e atolado em preconceitos, a enorme maioria dos privilegiados teria nojo de dar um abraço num morador de rua, aquele cara que está sim mais exposto a germes, micróbios, piolhos e outros elementos contrários a nossos elevados padrões de limpeza. Não, não fiz nenhuma pesquisa para validar essa afirmação, mas algo me diz que você, assim como eu, também não tem muitas dúvidas quanto a isso. Não é verdade? Você aí com casa e roupa lavada, rico ou mesmo pobre, abraçaria aquele morador de rua ali da esquina? Não precisa ser sincero comigo, mas pelo menos seja sincero com você.

Falando por mim, até aquele momento, eu não abraçaria. Não cheguei àquela praça pensando em abraçar ou beijar ninguém. Mas naquela ronda entendi um pouco do peso que pesa sobre esses que são a escória da sociedade, seres separados dos demais por causa de alguns detalhes que formam a equação complexa dos trilhos de nossas vidas; às vezes uma pequena decisão, uma cheirada numa carreira de cocaína, um momento de desespero, uma época de fraqueza e pronto: quando você vê, a rua passou a ser seu novo endereço.

Aos poucos fui me livrando da máscara da superioridade. Impossível livrar-se completamente. São décadas sendo doutrinado a acreditar que você é melhor do que aquele cara sentado na calçada. Comecei a sorrir mais à vontade. Cheguei mais perto. Sentei do lado. Encostei. Em que tipo de humanidade nos transformamos quando encostar torna-se algo a ser celebrado como uma vitória? Dei oi com beijinho na bochecha. Dei tchau com abraço. E poucas vezes na minha vida me senti tão vivo. Estávamos vivos. Para a minha surpresa, eles também. Como eles conseguem? Não sei. Saí de lá sem entender. Como eles conseguem?

Dediquei a maioria do meu tempo falando com o T., 22 anos. Minha sócia conversou mais com o P., cuja idade não sabemos, mas eu chutaria uns 40.

T. saiu de casa porque o tráfico de drogas o jurou de morte, depois de assassinar seus dois irmãos. O motivo? Eram nascidos em outra comunidade e, ao se mudarem, surgiram suspeitas de serem espiões de uma facção rival. Um dos seus irmãos chegou mesmo a se envolver com o crime, mas ele sempre se manteve distante daquela vida. Posso provar? Sim e não. Estava lá nos seus olhos. Apostaria minha vida na sua inocência. T. chegou a ser da banda da igreja local. Falava com uma voz mais confortável que uma almofada. Cara articulado, bonito, poderia entrar na cota de modelo negro de qualquer marca de roupa. Sua mãe não sabe que ele mora na rua. Diz que se contar a verdade ela venderia a casa que construiu com tanto amor e o levaria para longe dali. “Nunca vou fazer ela abrir mão do que ela conquistou”. Peguei seu e-mail dizendo que tentaria ajudá-lo, quebrando uma das regras do protocolo do RUAS. Ele disse que de tempos em tempos tem acesso a um computador. Até hoje não escrevi. Até hoje não ajudei. Nos despedimos com um abraço longo. Nunca mais vou esquecê-lo.

O P., por sua vez, presenciou sua mãe ser assassinada quando tinha 8 anos. Ela era mulher de traficante, dono de uma das bocas da região. Após terminar o serviço, o assassino ainda disse: “Tô fazendo isso na sua frente pra ver o que você vai fazer comigo quando você crescer”. Não deu outra, ainda jovem já era um dos traficantes mais importantes da sua favela. Um dia P. se apaixonou e casou. Teve dois filhos. Sua mulher era muito religiosa e o convenceu a largar o mundo do crime. Saiu dali e foi com a família para a cidade. Mora um pouco com eles e outro pouco na rua, por conta de sua dependência química. A certa altura passou uma viatura da polícia: “Esses aí são da milícia. Cobram pedágio dos moradores na favela pra nada acontecer com eles. A gente fica com receio. Agora eles não vão fazer nada porque vocês tão aqui”.

Ao falar sobre os voluntários do Projeto Ruas, P. e T. abrem um sorriso e se emocionam. A vida não lhes acostumou a ter gente pronta para ouvi-los. “Eles lembram o meu nome”, disse T., sorridente.

A ronda terminou e houve uma rápida reunião de voluntários, para deliberar sobre aprendizados e próximos passos. Em seguida fomos embora, cada um carregando as suas lições. No dia seguinte a Paola, responsável pela comunicação do RUAS, passou o contato do Dener, um dos maiores exemplos de superação que o projeto ajudou a conduzir. Ele foi o único que aceitou aparecer para a nossa câmera, mas por motivos de agenda, não houve tempo para filmá-lo. Fiquei pensando porque ele aceitou e a resposta me pareceu clara: o Dener voltou a ser gente, agora ele tem uma casa.

Entrevistei-o algumas semanas depois, à distância. Que amor de pessoa. Sua história também é clássica. Cara trabalhador que começou a ganhar um pouco mais de dinheiro e se perdeu nas drogas e álcool. Foi parar na cracolândia em São Paulo. Passou anos na rua, convivendo com seus vícios. Um dia pediu para o RUAS ajudá-lo e eles o colocaram numa casa de recuperação, onde ficou 11 meses. “A ação do RUAS é diferente de tudo o que havia presenciado até então. Paulo, o apóstolo, em uma das suas cartas, diz que somos cartas vivas. Creio que se somos cartas vivas, devemos viver nossa fé, dando vida às nossas obras, para que não seja uma fé morta. Eles são leigos, mas é assim que os tenho visto. Como cartas vivas”.

Acabei a entrevista e imaginei o Dener, aquele cara limpinho e abraçável com quem eu estava falando, alguns anos antes jogado em uma esquina de Copacabana ou da Lapa. Será que eu o abraçaria naquele outro contexto?

As estatísticas variam bastante, mas existem milhares (algumas falam em milhões) de moradores de rua no Brasil. É um problema estrutural, cultural, racial, espiritual, ideológico, sociológico, dentre as tantas outras perspectivas pelas quais podemos analisá-lo. Não podemos vencê-lo sem a participação do poder público. Mas se pedirem minha opinião, uma boa forma de começar a fazer algo é ir até aquela praça perto da sua casa, sentar ao lado dessas pessoas e perguntar seus nomes. Se quiser levar um sanduíche, melhor ainda. E se vencer o nojo e tiver vontade de abraçar, vá em frente. Vai fazer bem para elas e para você.

Temos nojo de pessoas. Encare essa verdade. O que estamos fazendo para mudá-la?

NOTA: para conhecer mais sobre o trabalho do RUAS, clique aqui.

Matheus Machado

Matheus Machado

Matheus Machado foi advogado tributarista. Por algum motivo, gosta de frisar que foi e não é mais. Hoje vive para o Infame, projeto que idealizou por achar que observamos muito pouco a vida ao nosso redor e com isso acabamos ignorando grandes histórias. Depende de música para existir e tem uma queda especial por punk rock e hardcore, ritmos pelos quais começou a entender a importância do submundo, do esquecido, do marginalizado. Diz estar feliz, mas no fundo no fundo queria mesmo viver só para escrever.