Enquanto discutíamos o poema de Billy Collins “On Turning Ten”, a professora da sexta série da minha filha parou na fala “É hora de dar adeus ao meu amigo imaginário”. Virando-se para a turma com uma risada, ela improvisou, “se você tem mais de dez anos e ainda tem um amigo imaginário, venha se consultar comigo”.
Pena para os filhos de escritores de ficção. Minha filha, chocada, relatou hesitante o ocorrido naquela noite — e mesmo enquanto eu a tranquilizava, eu tinha ciência da estranheza das minhas palavras: Querida, desde que eu saiba que os meus amigos imaginários não são reais, não há nada de errado em ser…real.
Eu tenho bem mais do que dez anos e vivo entre amigos imaginários. Como romancista, eu passei anos descobrindo seus segredos, seus medos e seu senso de humor. Meus personagens são músicos, professores, historiadores — qualquer coisa menos escritores de ficção. Eles são mais altos do que eu ou mais baixos; menos educados ou — assustadoramente — mais educados. Cada cena que eu escrevo através de seus olhos, é um convite a um modo diferente de viver no mundo. Como seria descer uma rua à noite sendo um homem de um metro e noventa e ver mulheres acelerando seus passos olhando nervosas para você? Como é ser velho; ser um imigrante; ser poderoso, sem poder?
O hábito de inventar pessoas cria uma certa dose de desconfiança. Já fui cercado por um estudante de psicologia e indagado, meio que de brincadeira, sobre a minha profissão. (Você sabe que eles não são reais, certo?) Com mais frequência, eu encontro ceticismo em relação a todo o plano imaginário. (Não são os romancistas, meras cópias de pessoas reais? Tem um gravador embaixo dessa mesa?) Alguns escritores roubam um bocado da vida real, outros não — a única constante é que toda obra de um escritor é autobiográfica, do ponto de vista emocional. Um ensaísta olhando da janela de um ônibus pode reparar em um bate-boca em andamento. O ônibus segue em frente; a calçada é arrancada. Mas agora, a curiosidade do escritor assume o controle: como seria ser um daqueles velhos bem vestidos gritando em plena luz do dia? Alguma coisa com um dos dois homens — talvez sua aparência curvada — lembre o escritor o seu gentil avô. Ainda assim, aqueles caras na calçada estavam furiosos. Por que? Eles vão sair no tapa? Se um deles recuasse, como o avô do escritor faria, quais seriam as consequências? E como os vizinhos reagiriam a alguém que se permita ser intimidado — e já que estamos no assunto, que tipo de pessoas são esses vizinhos? Talvez um deles, uma mãe solteira recém-chegada com seu filho, dê uma resposta impressionante…
Quando a história estiver terminada, aquela passagem na calçada será apenas um elemento de qualquer coisa que preocupa o escritor — seja uma pergunta perturbando o grande mundo político, ou apenas tocando o mundo íntimo de um único coração. É por isso que pressionar um romancista por fatos por traz de uma obra de ficção não dá em muito. O conteúdo nutricional de um livro não pode ser determinado pela lista de ingredientes; uma história não é um mapa da vida real e factual de um escritor. Como a minha amada tia dizia para os amigos que perguntavam em que ponto, nos meus romances, eles poderiam achá-la: se você quiser me encontrar, venha até a minha casa.
Convencer que os céticos amigos imaginários existem, pode ser uma missão difícil. Eu não culpo a professora da minha família por dar voz a uma das premissas básicas da sociedade: o rico mundo das pessoas de faz de conta é apenas para crianças. (Se você não está convencido da onipresença dessa premissa, imagina uma conversa onde um amigo falasse para o outro, “Eu passei o meu almoço inteiro imaginando como uma moça que eu inventei reagiria, se estivesse perdida em um outro país.”) Pode ser aceitável que um adulto jogue videogames ou fantasy baseball…mas obviamente, a fim de nos tornarmos adultos na prática, cada um de nós tem que renunciar o nosso Puff, o Dragão Mágico.
Mas e se todos nós — não só os escritores — precisássemos de amigos imaginários mais do que se imagina?
Vivemos em uma era saturada de informação. Fotos de comida de amigos nas mídias sociais disputam nossa atenção com as notícias do dia; informações chegam mais rápido e através de mais canais do que em qualquer época da história humana. O supostamente verdadeiro domina até mesmo o mundo do entretenimento, onde — nas palavras de John Jeremiah Sullivan — os reality shows há muito dominaram a paisagem cultural. (E claro se fatos e contra-fatos já voavam baixo antes de 2017, agora estamos eternamente ensurdecidos pelo ruído sônico de “fatos alternativos”. Não é de se admirar que discussões sobre ficção pareçam irrelevantes, quando confabulações disfarçadas de fatos exigem uma resposta a todo momento.)
A ideia de que o imaginário é coisa do passado, tem na verdade, ganhado força há anos, até mesmo no círculo literário. A tão elogiada obra de David Shields, Reality Hunger: A Manifesto (fome de realidade, um manifesto) rejeita a ficção, chamando a não-ficção de “incomparavelmente mais atraente” e citando a declaração de Alain Robbe-Grillet, “o romance de personagens…pertence inteiramente ao passado”.
O cansaço com formas de arte antigas é natural e estimula a inovação — de fato há um experimento fascinante no mundo da narrativa hoje em dia. Mas assim como #FerranteFever e a resposta fervorosa a obras como A Little Life (uma vida pequena) de Hanya Yanigahara, demonstram que, qualquer alegação de que a ficção é obsoleta é facilmente refutada. O que os leitores querem, independente do formato ou gênero, é simplesmente o tipo mais real de realidade — o tipo que reflete honestamente a sensação de ser humano. E em uma época de desumanização desenfreada, a história da humanidade não é apenas interessante — é um antídoto.
Falar a verdade sobre a experiência humana não é fácil. O mesmo se repete em toda forma de comunicação já criada — memórias, ficção, telefonema, post em blogs, e eu imagino até hieróglifos. O ego atrapalha o interlocutor, assim como o amor. Nós escritores podemos dizer algo machista sobre a crueldade autoral, mas, em algum lugar, a maioria de nós sucumbe ao desejo de proteger alguém de um olhar abrasador – mesmo que apenas nós mesmos.
Em meio a essa confusão de impulsos, a ficção é a melhor maneira de saber ser sincero. Com amigos imaginários, não há quem proteger, e a permissão de falar com liberdade é sempre garantida. Meus personagens podem tropeçar, derrubar coisas e agir errado sem causar embaraço ou briga. Além disso, quanto mais eu me aventuro fora da minha própria vida, menos limitado me sinto pelo meu próprio ego e meus medos, e mais livre sou para entrar nas sempre arriscadas camadas da experiência humana: as pessoas falam… mas, por baixo disso, há o que sentimos – esse relâmpago de raiva reprimida ou alegria inesperada … mais abaixo está o pensamento contundente e proibido… e adiante no subsolo da consciência, uma questão de tolhimento. Se o acesso a este terreno é um benefício do que Daniel Mendelsohn chama de “mascaras de proteção oferecidas pela ficção”, então parece valer a pena abrir mão da autoridade confortante da realidade (essa história é importante porque ela de fato aconteceu).
Cada gênero, é claro, oferece o seu poderoso mapa literário da experiência humana. Mas é para a ficção que eu me volto, como escritora e leitora, quando sufocada pelas notícias; pela alegria roteirizada dos posts do Facebook; por vozes gravadas que me ajudam a navegar rodovias, menus telefônicos, compra de presentes e escolhas de remédios, todos tão despojados de humanidade que eu nem consigo evitar repetir o final de Prufrock: “até que vozes automatizadas nos acordem e nós nos afoguemos”.
Escrever, no seu mais alto nível, nos surpreende simultaneamente com os dois lados da mesma moeda: Outras pessoas vivenciam o mundo diferente de mim, e eu não sou o único — outros sentem exatamente o mesmo que eu. Para mim, há prazer na dedicação de anos aprendendo o que um número infinito de fictícios “não eu” podem aprender e experimentar. O faz de conta me faz simpatizar com os outros. É a coisa mais madura que eu sei fazer.
Pelo menos é o que eu digo a mim mesmo, depois que meus filhos foram dormir, quando eu e o cesto de doces que sobraram do dia das bruxas lutamos contra um grande volume de filosofia Iluminista — porque o protagonista do meu novo romance é um filósofo, e eu não vou conseguir escrever bem sobre ela até entender Spinoza.
“Tive vida longa entre aqueles que inventei”, escreveu Bernard Malamud, ele mesmo o pastor de um rebanho iluminado de almas inventadas. Chame-me de maluco — Eu continuo com meus amigos imaginários.