Infame

Idiomas em Extinção

“É difícil lembrar as palavras sem ninguém com quem falar. É como um pássaro perdendo penas. Você vê um levantando voo e lá vai – outra palavra se foi.” Chemehuevi, Arizona.

Por Nara Yoko |  03 de julho de 2017

Há algumas semanas nos deparamos com o projeto Vanishing Languages, da fotógrafa americana Lynn Johnson, que registra os solitários últimos indivíduos responsáveis por suas línguas maternas. Segundo o catálogo de línguas Ethnologue, uma das maiores fontes de recursos linguísticos atuais, existem no mundo cerca de 6909 idiomas vivos, mas cerca de duzentas são faladas por menos de dez pessoas. Johnson foi buscar seus retratos nas estepes russas, nas costas mexicanas e no interior indiano, mas não precisamos ir tão longe. Desde o ano de 1500, a diversidade de línguas indígenas brasileiras enfrenta o seu declínio constante. Em 2009, de acordo com o Atlas Interativo de Línguas em Perigo no Mundo da Unesco, o Brasil era o terceiro país com maior número de línguas em risco de extinção. Naquele ano, o idioma kaixána vivia seus últimos anos na voz de Seu Raimundo.


“É difícil lembrar as palavras sem ninguém com quem falar. É como um pássaro perdendo penas. Você vê um levantando voo e lá vai – outra palavra se foi.”

Chemehuevi, Arizona.


No dia do nascimento de sua primeira neta, Seu Raimundo não pôde lhe dar o presente que gostaria. Apesar de se lembrar exatamente da forma que abrigava o objeto, não conseguiria montá-lo por si próprio sem as ferramentas e os ingredientes necessários. Pediu ajuda à filha mais velha, aquela com a maior probabilidade de ter conhecido os segredos da avó, na esperança de relembrar ao menos um vestígio fugaz daquela memória. Foi em vão: ela não só se esquecera dos detalhes do artefato, como o nomeara com um vocábulo pobre e inexato. Seu Raimundo não sabia nem mesmo classificá-la, a coisa, às vezes era brinquedo, às vezes instrumento musical, mas sua mãe dizia que, na verdade, era um amuleto contra os espíritos ruins das noites longas. Bastou que lhe irrompesse a mente a imagem da mãe ralhando aos ventos para que o nome da peça se fizesse ouvir naquela voz severa. Seu Raimundo se deliciou com o repente da lembrança, com o som sinestésico daquela palavra e com a brabeza da progenitora. Correu a passos curtos para o quarto com o baticum no peito a gritar e apanhou com as duas mãos o pote de argila dentro do guarda-roupa. Contou todas as moedas lá de dentro e foi devagarinho até a cidade para procurar o mimo da sua nova infanta.

A duradoura caminhada provocou-lhe uma sensação de ansiedade extrema, mas embalada numa fina membrana de ternura, que deixava um rastro de satisfação e modesto orgulho. Isso tinha um nome e Seu Raimundo o conhecia, uma única palavra que resumia todas essas outras sensações do homem branco. O homem branco já havia demonstrado não ser capaz de sentir orgulho de forma terna e por isso não conseguiria nomear esse sentimento. Aquele era o mesmo sentimento que o pequeno Raimundo experimentava quando seu pai se aproximava de casa com o almoço colhido pelas próprias mãos ou quando sua avó lhe prometia uma lenda dos seus antepassados. Todas aquelas memórias de família lhe arrebatavam o peito e lhe despertavam uma grande e irremediável saudade, palavra que aprendera quando os filhos se foram para longe de casa, e Seu Raimundo sentiu uma vontade de chorar. Era mais que uma vontade, na verdade, era a necessidade do processo de diluir pelos olhos a mão que apertava com força o coração, e ele sabia que um dia existira uma palavra praquilo também, mas ele não a lembrava mais.

Quando seus passos entraram nos limites da cidade, depois de caminharem sob o sol violento do meio-dia, o homem sentia sob a pele o poder que a vitória reservava aos mais bravos do seu grupo, poder cujo nome uma vez fora conhecido por todos, mas praticamente proibido aos não dignos. Essa nunca fora razão de vergonha, os seus tinham tanto respeito por aquela sensação que evitavam senti-la ou invocá-la em vão. Seu Raimundo nunca a havia provado até o momento, então sentiu falta de lembrar-se da palavra exata que a descrevia. Às vezes algum parente o surpreendia enquanto falava com seus fantasmas usando esse idioma obscuro e incompreensível. Atribuíam a atividade à idade avançada do senhor, que já havia deixado de se preocupar com aquele consenso. Nenhum deles tinha o costume de falar com os fantasmas, então ignoravam o que era aquilo, mas Seu Raimundo não: era um nome bonito que lembrava um sussurro, para que só os fantasmas o escutassem.

À porta da mercearia, o velho cumprimentou a vendedora com a saudação padrão. Muito simpática, prontificou-se a recebê-lo com um sorriso nos lábios e ele achou que a pele dela tinha uma cor diferente, mais escura que casca de buriti, uma cor que o homem branco não soube classificar. A agitação da viagem havia preservado o presente da neta na ponta da língua de Seu Raimundo e o cuspiu quase de imediato. A moça da venda, empenhada em fazer um bom trabalho, estreitou os olhinhos e franziu as sobrancelhas antes de pedir que ele repetisse o que dissera. Enfim, o pobre coitado entendeu que seria inútil tentar comprar algo que nascia das mãos das matriarcas das famílias e que nunca teria sido posto à venda. Mas uma parte de si resolveu insistir e repetir o nome, descrever sua função, suas cores, seu formato e o material de que era feito. A garota pediu desculpas: desconhecia completamente aquele objeto. Sugeriu ainda ao cliente isso ou aquilo, mas sem sucesso, o senhor acabara tornando-se a personificação da derrota. Ela não sabia o nome daquela metamorfose, mas Seu Raimundo lembrou-se dele assim que ouvira a resposta da vendedora. Perguntou ainda se ela sabia onde ele poderia encontrar o tal presente, mas ela não fazia ideia. Por instinto, ao invés de somente agradecê-la, ele usou aquela palavra que transmite ao interlocutor o desejo de que ele seja guiado pelos deuses a cada decisão tomada, mas a garota não sabia responder àquilo.

Sem mais opções, Seu Raimundo retornou à casa parecendo um fiapo de manga cavalo, com a consciência de que sua morte extinguiria a sua língua materna e todas as coisas que ela era capaz de nomear. Os brancos não conheciam ainda aquelas peças e emoções, e nunca mais poderiam conhecê-las após a sua morte. Apavorou-se com a ideia de que levaria embora, além de seu corpo, também tantas cantigas, lendas, parlendas, receitas caseiras, piadas, ideias e sua reação inicial foi a recusa à própria morte, como se fosse possível conhecer a imortalidade. Seu Raimundo queixou-se com os fantasmas, ralhou com eles e consigo, sentiu todo o peso daquela responsabilidade sobre os ombros, como se carregasse sobre eles todas as nuvens pretas de chuva do dilúvio. Entrou em casa, pegou sua agenda telefônica preta, chamou a filha e perguntou-lhe o que seria útil para a bebê recém-nascida. A partir de então, Seu Raimundo presenteou todos os netos com fraldas descartáveis.

Nara Yoko

Nara Yoko

Nara Yoko atualmente tenta ensinar outras línguas para as pessoas. Sempre amou a Literatura e decidiu entrar na faculdade de Letras para entendê-la melhor. Acabou entendendo a si mesma um pouco melhor e seu sonho agora é escrever o bastante para passar o resto da vida ao lado de seus felinos.