“A importância da imagem e representatividade para formação de identidade negra”. Esse foi o título da minha dissertação na pós – graduação. Mas, para chegar até aí, precisei levantar outro tema na minha vida: “quando foi que me tornei a mulher que sou agora?”. E essa foi uma pergunta que fiz pra mim, quando comecei a analisar toda minha trajetória de vida como mulher negra. Desde a minha infância no interior de São Paulo, passando por ter morado fora do país quando pré-adolescente, ter tido uma adolescência cheia de questões no interior, uma formação de identidade e fortalecimento da minha imagem durante a faculdade e por fim, a mulher que sou hoje. Vivi o outro lado da história. Em um “mundo branco”. Nesse mundo branco, me questionava: O que a publicidade fez comigo e faz com adolescentes e com população negra com um todo? Viver num mundo branco não é fácil, me sinto sempre observada com desconfiança – no shopping, no restaurante, no trabalho, no supermercado, menosprezada… OPA! Peraí – “Mimimi”? – Minha definição de mimimi: Sentença, som, máxima propagada pelo opressor, na tentativa de desarticular um discurso relevante, necessário – onde ele, o opressor, sequer deveria ter lugar de fala. É nele, nesse “mundo branco”, que sinto o racismo, o preconceito raivoso.
Minha mudança para São Paulo, pós ter me graduado na faculdade, me trouxe uma verdadeira imagem de quem eu sou, uma libertação que jamais achei que pudesse existir.
(Indicação de música – Menina pretinha – MC Soffia) Cresci sem brincar com bonecas pretas, no interior de São Paulo – isso é um fato relevante quando penso na minha trajetória. A verdade é que, infelizmente, tenho certo “asco” de lembrar como foram alguns recortes da minha vida lá. Lembro na primeira série, eu saindo da escola e um grupo de meninos gritarem: “sua neguinha feia”. Cheguei em casa chorando, falando Pai: ”Me chamaram de neguinha feia!” Meu pai tentou me consolar colocando “panos quentes”; já minha mãe, comprou as melhores roupinhas pra mim, me arrumou toda linda pra participar de um concurso de beleza, o qual eu perdi. Na passarela fui hostilizada mais uma vez pelos meninos que riam de mim, me xingavam, tentavam me diminuir… Eu apontei o dedo do meio pra eles e fui eliminada do concurso. Minha mãe nunca soube. Pra ela eu disse que havia ganhado o concurso; mas ela sabia que não era verdade.
Agosto de 1998, com 11 anos de idade me mudei para Califórnia com a minha família, meu pai foi fazer pós- doutorado na Universidade da Califórnia. Com pouca fluência em inglês, em três meses já havia saído das aulas “especiais” de inglês para estrangeiros e frequentando as aulas normais. Em três meses, já almoçava com as meninas mais populares da escola, e era uma delas. “American dream” das mais populares, três eram negras, comigo quatro!
(Indicação de música- MAD – Solange Knowles) No Brasil, os protagonistas de programas para pré – adolescentes (como a novela Malhação, por exemplo) eram brancos. Nos EUA, ao ligar a tv, havia programas para adolescentes com protagonistas brancos (Full House, Brady Bunch), mas também havia programas com protagonistas negros. Um dos meus favoritos era Sister Sister, duas irmãs gêmeas negras protagonistas (Tia and Tamara Mowry), The Fresh Prince Of Bel Air, Family atters (Steve Urkel- the black nerd!!). Uma das apresentadoras de tv mais famosa dos EUA e do mundo era (É!) negra – Oprah Winfrey. Havia também várias cantoras teens pops negras como Destinys hild, TLC, Brandy, Monica… era outro mundo, e que mundo! Eu me via, eu pré- adolescente não sabia, mas eu já me emponderava vendo essas referências na TV. Essas foram as imagens, essa foi a minha fase do espelho, de “quem me espelhar”. Esse foi o processo de construção de identidade que vi tive na minha pré- adolescência.
Voltei pra Araraquara para me preparar melhor para a fase do pré-vestibular. Segundo e terceiro colegial em uma escola particular. Nesses dois anos, eu lutei pra me encaixar no padrão das revistas teen para meninas da minha idade, a maioria de cabelos lisos, com alto padrão de vida, como as meninas das novelas na televisão. Eu lutei e me desgastei. Diferentemente da experiência prévia nos EUA e no colégio em São Paulo, em Araraquara no colégio particular, eu era a única negra da escola. Meu rendimento escolar caiu, eu tinha dificuldades em acompanhar as matérias, e sofria preconceito por parte dos outros “coleguinhas”. Todo e qualquer fator econômico ou estético, naquele momento, não fazia diferença para meus colegas me incluírem como uma igual – eu era negra. E ponto. Anos depois, em uma conversa com o meu pai sobre a minha adolescência ele disse: “Era racismo, você era perseguida, mas eu não tinha o que fazer… e não podia ‘concordar’ com você, porque conheço teu gênio”.
Depois da fase (dramática) do colégio “Malhação”, fui para Ouro Preto, para a UFOP, onde havia um mínimo acréscimo de diversidade estudantil. Me emponderei. Dividi a sala de aula, dentro de uma Universidade Federal, pelo menos até o segundo ano do curso, (ninguém desistiu, apenas mudaram de curso e ou universidade) em uma sala de 20 alunos; 4 eram negros. Isso era uma vitória! Andar pelo campus, ir a festas em repúblicas e ver mais negros, pra mim, em silêncio (porque não tinha maturidade ainda para falar sobre o assunto) foi transformador. Acho que o “isolamento” de morar em Ouro Preto – MG durante a faculdade foi tão grande, que me esqueci das revistas, da Tv, das lojas, dos padrões impostos. Esse foi a primeira fase do processo.
Depois de me formar, voltei para São Paulo e iniciei pós-graduação em Jornalismo cultural na FAAP, onde mais uma vez eu era a única negra. Nesta fase eu aprofundei meus questionamentos sobre a representatividade midiática, sobretudo na fase de construção de identidade. Identifiquei uma contradição de exemplos entre as minhas vivências (meu núcleo familiar e experiência no exterior) e a representação de pessoas como eu na televisão no Brasil. A única lembrança que tive de negros bem sucedidos e bem representados foi quando morei fora do país. Essa nunca foi a realidade exclusiva dos negros que fazem parte do meu núcleo familiar. Eu tenho todos os tipos de profissões representadas na minha família e que não são restritas à apenas um círculo social: farmacêutico bioquímico, empregada doméstica, caminhoneiro, músico, matemático, enfermeiro, militar, psicóloga, advogada, chefe de cozinha, servente de pedreiro, etc. Meus pais foram professores universitários, meu avô professor e pedagogo. Minha avó também professora.
Eu tive esse reflexo dentro de casa. Mas fora, que representa grande parte de influência direta em nossas vidas como na escola, nos programas que assistimos na Tv, nas revistas que folhamos a representatividade é escassa. Esses grandes meios de comunicação e formadores de opinião e conceitos raramente me representaram ou contribuíram para a ideia de que o negro pode sim ser protagonista, pode sim ser a “menina mais popular da escola”, pode sim ser acadêmico, pode sim ingressar a universidade e se reconhecer nesse ambiente! Yes we can!
(Indicação de música – Unpretty – TLC) A Tv e as revistas me massacraram e fizeram eu me sentir feia; foram à base de um racismo oficial e adicional ao que eu sofria no dia a dia durante a adolescência. A publicidade não me representou e ainda não me representa. Vejo pequenas, porém significativas, mudanças em antigos estereótipos que me fizeram querer esconder meu corpo. A globeleza é o típico exemplo. “Como assim você é negra e não sabe sambar?” Cresci escutando essa frase escrota! Por uma constante lute de ativistas negras, isso está mudando.
A negra representada por cabelos lisos e compridos, não atende mais a minha imagem. Não atendo mais a esses padrões. Também não estou aqui pra julgar você que usa cabelos lisos e compridos. Use o seu cabelo como da forma que você se sinta linda!! O que a publicidade fez comigo, foi reversível, pela trajetória de vida que tive, tenho. Mas penso todos os dias no que a publicidade esta fazendo com outras meninxs, adolescentes negrxs. O quanto é necessária à representatividade acadêmica, artística, cultural, religiosa e estética.
(Am I the same girl – Barbara Acklin) Hoje as pessoas me questionam algumas de forma silenciosa, outras até por “inbox” no Facebook sobre essa minha “mudança”. E sim, tenho a resposta pro seu questionamento: floresci! Finquei meus pés no chão, me empoderei, me tornei a mulher negra que um dia me inspire ser. Houve um momento de despertar. Me culpei por isso ter demorado tanto, mas me culpei por pouco tempo. Essa culpa veio antes de me informar, ler, consultar blogs, sites, vlogs de outras meninas com histórias, trajetórias parecidas com a minha. A verdade é que a grande maioria das meninas negras passam sim por esse momento. O empoderamento é um trabalho de construção e reconstrução que precisa ser feito todos os dias. A mudança vem às vezes em forma de ativismo, às vezes em forma de libertação dos cabelos como ato político. Ou apontando, não deixando mais que o negro seja hostilizado, ou motivo de qualquer piada; que antes era “é só brincadeira”. Hoje muitos me julgam como “chata”, feminista negra nervosa, que vê racismo em tudo. Vejo, porque circulo em mundo branco. Mas agora tenho voz. Essa voz quer e “estende a mão” a adolescentes negrxs, quer apontar para publicidade sempre o inadequado, a falta de representatividade. Essa voz que tenho hoje é ativa, colaborativa e emponderada. (Indicação de música – 100% feminista Karol Conka)