Infame

“Ficam Surpresos por Eu Ser Mulher e Tão Jovem”: o Primeiro Fotógrafo a Cobrir a Rotina do Exército é, Na Verdade, Uma Fotógrafa

“Aquela tradição, rituais, cerimônias que existem há muito tempo ajudam a criar laços de irmãos. No fim já era todo mundo família. Eu, inclusive. Nem parecia que estávamos lá porque um dia, talvez, explodisse uma guerra".

Por Paula Mariane |  23 de junho de 2017

“Eu nem sabia se um dia eu chegaria a ter uma câmera”. Confessa Paula, jovem fotógrafa de Votorantim, São Paulo. Dizer jovem às vezes até parece pouco. Basta olhá-la ou ouvir sua voz: Paula é uma menina.

Uma menina a quem não falta brio, porém. Dessas que só merece ser chamada de menina por questões cronológicas e nunca por lhe faltar quaisquer das características necessárias para transformar pessoas em adultos.

Paula sempre foi ligada à fotografia de rua, a fotos que contassem as histórias de pessoas comuns. “Nunca me interessei muito por foto de natureza, de paisagem. Queria ver foto de gente. A graça da fotografia é que ela pode ser entendida de mil formas diferentes por pessoas diferentes. Mas ao mesmo tempo pessoas totalmente diferentes, de outros países, podem enxergar a mesma coisa. É uma linguagem universal, como se pudéssemos falar a mesma língua”.

Sempre foi uma observadora. Com apenas 10 anos, ela já passava horas navegando pelo Flickr, site de imagens do Yahoo!. Até aquele momento, porém, ainda não fora atingida pela noção de que um dia poderia participar daquele universo de forma ativa. “Meu pai era mecânico, minha mãe era operadora de caixa. Na época era um sonho distante, as máquinas cybershot ainda eram uma fortuna. Nunca tinha tido a chance de tocar numa câmera. Se me perguntassem, talvez diria que nunca tocaria”.

Contudo, alguns anos mais tarde, com 14 anos, ganhou uma Sony cybershot: “Bem velha e bem usada”, diz fazendo questão de frisar cada um dos “bens”. Nessa época inscreveu-se num curso de fotografia em Votorantim. “Era um curso de fotografia ambiental. Eu não gostava de fotografia ambiental. Mas quem mora em Votorantim não tem muita escolha. Continuava sendo fotografia. Então fui”. A grande maioria dos alunos tinha uma câmera profissional. Todos eram bem mais velhos. Sem muito ambiente e sem uma câmera decente, continuou indo às aulas até a professora notar o seu talento para enxergar os pequenos detalhes. Ali começou a conquistá-la.

O tempo passou e na segunda saída fotográfica fizeram uma trilha de 9km na qual sofreu um acidente. Pisou em falso num poço e afundou. Paula não sabia nadar. Na água escura, não enxergava mais e pensou que morreria. A professora foi a única a ver a queda e foi resgatá-la. Acordou do susto com alguns cortes. Seu primeiro comentário? “E a minha câmera?”. “Perdeu-se lá dentro, não resgatamos”. Apesar de os demais alunos quererem parar a trilha, Paula quis continuar, mesmo ferida e molhada. Sem câmera e abalada, ela permaneceu “cantando” as fotos para os outros alunos, fotografando com os olhos. Terminou o curso sem poder praticar, apenas concentrando-se na parte teórica.

Depois de alguns meses, abriu-se um novo curso na cidade. Dessa vez, era algo maior. Com 1 ano de duração, Paula não teve dúvidas. Chegou ao local de inscrição às 5 horas da manhã. Para sua frustração, porém, não foi autorizada a se matricular: era menor, tinha menos de 18 anos.

Passados mais alguns meses, soube de uma ONG em Sorocaba chamada Grupo Imagem, a única da região que aulas gratuitas para jovens. “Nunca fiz um curso pago. Se não fosse de graça, já era”. E depois de economizar anos, nessa mesma época conseguiu comprar uma câmera mais avançada: “Uma DSLR. Também bem velha e usada”. Lá conheceu um professor que estava deixando a coordenação do curso, o qual propôs que ela passasse a dar aulas no seu lugar. Paula aceitou e estagiou com ele durante 1 ano, acompanhando-o por todos os cantos. “Foi aí que criou-se minha identidade, essa coisa da rua, da praça”.

Orgulha-se ao dizer que alguns dos seus alunos seguiram carreira, destacando o potencial transformador do ofício, bem como sua capacidade de inserção social.

Foi trocando de câmera em câmera, sempre para uma um pouco melhor, um pouco menos velha, até chegar no equipamento que tem hoje. “Não me pergunte qual é a sensação de ter uma câmera nova, porque eu não sei. Um amigo comprou Leica e me vendeu essa aqui bem abaixo do mercado e parcelado em mil vezes. Pra mim uma câmera de R$ 500 faz o mesmo que as de R$ 15 mil. Todas registram a luz. A essência é a mesma. Nas aulas falo pros alunos que o que mais importa é a sensibilidade, a empatia com o próximo, porque só se enxerga ela tendo empatia. Só o ser humano enxerga a história. Câmeras nunca entendem o que está acontecendo”.

Aí chegou o dia em que ela foi parar no exército. Não pela forma normal, aquela que normalmente leva alguém para o exército.

“Durante a faculdade de jornalismo, em que sou bolsista integral, recebemos um e-mail dizendo que o exército teria um curso para pessoas interessadas em cobrir áreas de conflito. Eu pensei ‘claro, tô dentro’. Sempre quis conhecer e cobrir pessoas em situação de risco, enxergar um pouco do ser humano nos seus limites”.

Fez o curso, passou por vários lugares, palestras, e quando acabou sentiu que tinha encontrado um lugar para suas aspirações como fotógrafa. Não sabia de nada sobre o preparo do oficial combatente. Nunca teve um conhecido ou parente no exército. Percebeu que quase ninguém conhecia, na prática, o que era o exército. Sua maior referência era o regime militar, a ditadura terminada tantos anos antes de nascer, e que, uma vez lá dentro, nada lhe fazia lembrar daquele período tão sinistro de nossa história: “Era como se eu sentisse que o tempo passou. Que estava cercada de pessoas que não tinham nada a ver com aquilo que sempre ouvira”.

Logo Paula foi encaminhada para cobrir a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde o oficial combatente começa sua carreira por 1 ano, posteriormente completados com mais 4 anos na Academia de Agulhas Negras. No processo são promovidos a aspirantes e distribuídos nos batalhões do Brasil, tornando-se bacharéis em ciências militares, a partir de quando podem continuar galgando os degraus da carreira.

No começo Paula se sentiu bem perdida. Era um outro mundo, ao qual não pertencia. Cada aluno vinha com uma história, todos cheios de peculiaridades: “Somos um país desigual. Claro que muita gente está lá pensando na grana. Mas a maioria tem um outro ideal, um propósito que os une: por trás de cada fuzil tinha alguém que tinha deixado a família, desejos, sonhos, dores, só com 16, 17, 20 anos. Na mesma sala tinha um menino da Amazônia, outro do Rio Grande do Sul ou da Bahia. Um branco, outro negro. Gente sofrida, gente com mais condições. Ali dentro eles ficavam iguais rapidinho”. “Aquela tradição, rituais, cerimônias que existem há muito tempo ajudam a criar laços de irmãos. No fim já era todo mundo família. Eu, inclusive. Nem parecia que estávamos lá porque um dia, talvez, explodisse uma guerra”.

“Todo civil já viu fotos institucionais do exército. Aquilo pronto. Mas ninguém vê o que ele teve que passar pra chegar até lá: solidão, união, tristeza, risada, tudo isso contribui pra formar o soldado e a pessoa”. Ela própria sentiu alguma resistência lá dentro; pessoas perguntando: mas por que você está fazendo isso? Quantos anos você tem mesmo? Mas você é mulher, porque está aqui? “O exército, assim como outras instituições, é um reflexo da sociedade. Todos os problemas e preconceitos que existem no mundo, existem lá também. A primeira turma de mulheres combatentes foi iniciada este ano. Então está melhorando. Lá dentro e fora também. Sou a primeira pessoa a registrar os bastidores do exército. Sou mulher e sou nova. O instrutor disse que o exército precisa de pessoas assim, humanas, que queiram mostrar a verdade, humanizar o exército. Sei bem do esforço das mulheres por ocuparem novos espaços na sociedade. Tenho orgulho de representá-las”.

“Foi engraçado quando perceberam que eu tinha cabelo vermelho. Cabelo vermelho no exército? Deve ter tido gente perguntando: e pode isso? O que uma pessoa de cabelo vermelho tem de menos importante que outra? Fui lá de cabelo vermelho e conquistei meu espaço”.

Perguntada sobre o que mais as pessoas precisam saber sobre o exército, Paula faz uma lista: “É um caminho estável, em termos de carreira, mas não é fácil passar por tudo. Você vê os soldados ralando, sofrendo, é muito puxado”. “Também é legal que as pessoas saibam das missões especiais. O exército faz muito trabalho social. Ajuda muita gente. Quase ninguém fala disso”.

Também perguntamos sobre a questão político-ideológica. Haveria uma tendência por parte dos soldados de adotar posicionamentos mais tidos como “de direita”? “Eu acho que não. Não ouvi muita conversa sobre o assunto, mas acho que tem de tudo. Cada um tem a sua preferência política. Não colocam seu viés político à frente da pátria. É uma missão constitucional. Tem muita gente lá dentro que quer tornar o exército mais acessível, mais democratizado, mais próximo do meio civil. Cada um pensa uma coisa. Muitos militares defendem a desmilitarização da PM. Outros não. Tem que haver espaço para todos pensamentos, dentro e fora do exército”.

Vira e mexe Paula fala sobre gratidão. É palpável o entusiasmo com que fala das suas atividades, como se às vezes ainda não acreditasse que, de câmera em câmera, tornou-se a primeira pessoa a levar a imagem do exército para fora dos quartéis. “É acima de tudo um trabalho de transparência, de abrir a porta e mostrar a verdade. Se pudesse eu ficaria 24 horas lá fotografando.

Hoje você se sente mais brasileira? “Hummm… Sempre me senti brasileira. Comecei a me sentir brasileira na rua, tomando caldo de cana, ouvindo rock com samba. No exército conheci um outro lado do Brasil, mas tão brasileiro quanto os outros. O Brasil é tudo isso aí. E é o meu lugar”.

Paula Mariane

Paula Mariane

Paula é uma jovem fotógrafa que começou a fotografar antes mesmo de ter condições de ter uma máquina. Hoje é a primeira fotógrafa a trabalhar dentro do Exército Brasileiro.