“nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio
no peito.
comigo
a anatomia ficou louca.
sou todo coração –
em todas as partes palpita.”
Vladimir Maiakóvski
Eu havia escolhido. Parece que os olhos ficam mais atentos, depois que o coração invoca as estradas. A miopia desaparece. Os instantes se agigantam, ávidos de finitude.
A dor ficava constantemente anestesiada pelos remédios. Afinal, depois de pular dois muros, três psiquiatras, perder uma irmã, uma amiga e defenestrar um quase-pseudo-namorado, qual sofrimento seria vencido pela medicina?
Os amigos? Uns poucos tentaram. As pessoas têm ojeriza à dor. As pessoas também têm ojeriza à alegria. As pessoas não aceitam os excessos, não importa a natureza. Quaisquer transbordamentos, quaisquer dilúvios, quaisquer tempestades remetem aos humanos que a Natureza nos é maior.
Nenhum poeta mendiga por acolhimento, seus idiotas! Dai-me um papelão molhado, na Praça do Comércio. Uma cama no Jaguaré. Um quarto, abandonado, no feudo. Uma esplanada, de frente à igreja de Santo Estevão. Ah, como dói quando a alma vai viajar e não se sabe o nome do sítio.
E eu nunca tive medo de ser despejada da minh’alma. Confesso, o meu verdadeiro pavor é não respeitar mais esse planeta. Desprovido de poesia, escasso em generosidade. Lá, de onde viemos, a fartura é condição.
Só que me deparo com Vinícius de Moraes e a sua casa aberta. São cinco da manhã em Santo André da Bahia. O céu exige de mim a tradução maior de todas as psicodelias. Sou capaz de atravessar esses azuis? Ninguém está pronto para decifrar as alegrias.
No entanto, os roteiristas da vida são uns caras surpreendentes. Eles mudam a cabeça dos personagens, indiscriminadamente, como se as mudanças não tivessem passado por gestações infindas. A gente só arrepia no instante que precede os absurdos.
Por que será que há tanto glamour em sofrer? Por quais razões eu me identifico tanto com aquele poeta tuberculoso, pobre, derrotado? Onde mora essa bizarra união entre a arte e o fracasso?
Ou será ao contrário? Estamos ainda engatinhando na cosmicidade, ludibriando as ciências, envergonhando as estrelas?
Será que a beleza tem sempre que doer, ou somos nós, seres estéreis, incapazes, inconformados com os estrondos, insustentáveis, free jazz, da vida?
Por que eu ainda tenho medo do escuro, já que eu quero morrer?
Por que eu ainda olho para trás, à procura de um estranho, se eu quero morrer?
“(…). És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?”
Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
Ninguém nunca te vai sentir. E pior são aqueles que acham que te sentem. São muito menos generosos. Estes me doeram muito mais. Porque a tua dor vai ser sempre mais pequena, mais medíocre, menos válida.
Em um mundo onde a derrota do pensamento impera, ser suicida é quase realeza. E, como fenomenóloga, eu luto, veementemente, pelo direito ao protagonismo. O meu caso era de Poesia.
Contudo, eu não poderia ser igual aos suicidas óbvios. Então fui aproveitar, com classe. E, assim, quase matei meus pais. Prometi que, antes de morrer, ia te escrever, Pedro. Já que fracassei em tudo, absolutamente tudo nessa merda de planeta, eu ia inventar, eu ia me vingar, eu ia te fazer. Um protagonista em papel e livraria.
Meu pacto, por fim, comigo e com os comigos de mim era o seguinte: acabar a ti e me divertir. O resto que se foda. E jamais deixar de ser generosa, por mais que me desse vontade. Afinal, é a minha natureza.
Como meu derradeiro presente: fugir do natal. Odeio natal. A hipocrisia maior. Consumismo bizarro, shopping, amigo secreto. Reúne algumas das cousas que eu mais desprezo ao mesmo tempo. “Meu último natal vai ser na Bahia, não me importa com quem”.
No fundo, no fundo, bem lá no fundo, eu não queria me matar. Eu queria encontrar a minha casa. Mas as transformações são demoras que me desesperam. Eu não queria partir de mim. Assim como eu não quis partir dos amores que se estraçalharam, na minha memória. Eu tenho medo de não me ser boa anfitriã.
“Pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando”
Leminski
Não sei te dizer onde foi, Pedro. Ocorreu no banho de rio, quando a ostra quase decepou o meu dedo do pé, à luz da lua? Foi a caminho do forró, a reclamar das distâncias, aparentemente intransponíveis? Ou nas risadas intermináveis, com aqueles desconhecidos tão amáveis?! Nas madrugadas que fiz amigos pela vila? Nos intermináveis amanheceres que vivi?
Qualquer cousa aconteceu nessa passagem de ano. Lá estava eu a reverenciar o nascer do sol, no dia primeiro. A deitar fora minhas trevas. A vestir levezas que nem me cabem. A aprender que a beleza pode não mais doer.
E eu já não sei mais, Pedro. Tu não eras para ter uma mãe que passasse por isto. Eu vou ter que reaprender a ser mãe para te escrever também. A felicidade não estava calculada no nosso romance, meu querido.