O que significa, afinal de contas, falar em racismo estrutural, e como esse conceito pode nos ajudar a enfrentar o racismo? Mallu Magalhães e o famigerado clipe de Você Não Presta vão nos ajudar a responder.
Nos dias que se sucederam ao lançamento do clipe, muitos de nós fomos compelidos a responder, mesmo que não publicamente, se o clipe é ou não racista. Essa pergunta é importante, mas tende a nos levar a refletir sobre o racismo que opera no nível individual. A metáfora do iceberg é comumente usada por estudiosos estadounidenses para descrever o funcionamento do racismo. Aqui, Mallu e seu clipe estariam predominantemente na parte visível do gelo.
Atos de racismo que vão parar nos noticiários muito dificilmente não estão no campo do racismo individual. Tal qual a ponta do gelo, são mais visíveis – e nos mobilizam mais – casos como o da torcedora gremista que foi filmada chamando o goleiro Aranha, do Santos, de macaco em agosto de 2014. Ou a condenação de Rafael Braga, preso nas manifestações de 2013, a mais de 11 anos, sob acusação sustentada exclusivamente pelo depoimento dos policiais que o prenderam. Ou ainda a morte do líder indígena Gaudino Jesus dos Santos, queimado vivo em 1997 por cinco jovens da classe alta de Brasília. Mas tal qual a ponta do iceberg, o racismo tem outras camadas, maiores e mais perigosas.
O termo “racismo estrutural” (ou “institucional”, em algumas traduções), foi usado pela primeira vez por Hamilton e Carmichael no livro Black Power: the Politics of Liberation (1967) para designar as políticas e práticas que operam no campo social (coletivo) e que podem continuar operando sem necessariamente contar com a manutenção ativa dos indivíduos. Há exemplos cristalinos como o apartheid sul-africano ou o sequestro das cerca de 3 milhões de pessoas africanas que viveram como escravas no período colonial brasileiro. Hoje, no entanto, é difícil encontrar situações de racismo formalmente chanceladas por legislações. Apesar disso, os braços do Estado continuam exercendo formas de segregação racial, sendo notório o exemplo da guerra às drogas, grande responsável pelo encarceramento em massa de pessoas negras. Segundo o Departamento de Justiça dos EUA, 35% dos detentos e detentas do país são pessoas negras – contra 13,2%% na população geral. Assim como a vista naturalmente se dedica mais à pequena porção de gelo que se revela na superfície da água, também nós nos dedicamos com mais intensidade aos atos de racismo do que às estruturas que os sustentam.
Não se pode negar a boa intenção de Mallu. Rodeada por excelentes dançarinas e dançarinos negros, ela cantou que quem ela não convida para sua festa, ela não convida porque não presta. Pra não deixar dúvida de que pautou o racismo em seu clipe, Mallu foi didática: vestiu uma camiseta do Oscar 2012, a primeira edição em que as estatuetas de melhor atriz e ator foram ambas para pessoas negras (Halle Barry e Denzel Washington). Mas se, visto de fora, o racismo pode ser pensado como um gigante iceberg, do ponto de vista do indivíduo gosto de compará-lo a um caldo cultural no qual estamos todos imersos – e Mallu também está nadando na sopa.
Como muitos, eu também procurei responder se o clipe é racista. Como a maioria das pessoas brancas (e algumas poucas negras) com quem conversei, avaliei que não. Como branca, porém, preciso reconhecer que o iceberg não me oferece risco. Por isso, quando pessoas negras me apontam racismo onde eu não vejo, procuro forçar a vista para ver se enxergo o que elas veem. É natural que diferentes pontos de vista levem a diferentes visões do mesmo objeto.
Para muitas pessoas negras, o clipe trouxe à mente a imagem das prisões transbordadas de negras e negros. Para outras, as e os dançarinos negros foram mais uma das recorrentes cenas de hipersexualização do corpo negro, cujo ícone mais célebre é a Mulata Globeleza. Mas para mim, não.
Seria impossível e tolo buscar um consenso – percepções são verdades relativas a quem percebe – mas é instigante refletir sobre por que a maioria das pessoas brancas não viu racismo enquanto o oposto se deu com as pessoas negras. A resposta não é nada surpreendente.
Se pessoas brancas têm menos contato com o sistema carcerário, se estas imagens habitam o nosso imaginário em menor medida, é natural que sejamos mais dificilmente transportadas para este lugar. De maneira muito simplória, isso equivale a dizer que gato escaldado tem medo de água fria. E, a depender da história do gato, talvez uma pequena gota já baste para causar pânico, o que certamente parecerá tolice – ou vitimismo, se preferirem – ao gato que nunca se molhou. Esta segregação, da qual irremediavelmente derivam nossas visões de mundo, é a própria carne estruturante do racismo, e vale também para machismo, homofobia etc. Quanto mais perto de nós ocorre um fato, maior a chance de que ele nos mobilize – e isso não deixa de ser verdade mesmo quando um fato se repete muitas vezes longe dos nossos olhos.
As estatísticas têm esse poder de retratar o mundo com bastante exatidão. Debruçam-se sobre um pedaço da realidade e dele extraem uma síntese. Mas a morte de uma criança por uma doença curável costuma causar muito mais comoção do que uma taxa alta de mortalidade infantil ocasionada pela mesma doença. Se for a morte de uma criança próxima, maior o abalo. Se for a nossa criança, é possível que dediquemos o resto de nossas vidas a erradicar a enfermidade, mesmo que estatísticas nos digam que a falta de saneamento básico ou a fome matam muito mais crianças.
Assim, o olhar isolado desta ou daquela pessoa que enxerga racismo no trabalho de Mallu pode nos levar a compreender o que talvez tenha sido um ato de racismo (o que não necessariamente quer dizer que tenha havido intenção de agredir) mas é quando tiramos a lupa e enxergamos a distribuição das opiniões sobre o clipe entre negros e brancos que a porção submersa – e maior, e mais perigosa – do gelo começa a se desenhar. Há mais pessoas negras enxergando racismo no clipe (e no mundo) do que há pessoas negras enxergando o que eu enxergo no clipe. Em geral, tendemos a buscar uma resposta certa – “afinal, é ou não é racismo?” – que irá condenar todas e todos que dela discordem. E é positivo condenar atos de racismo, mas isso nunca pode ser o fim da linha.
Vamos lembrar que, uma vez instaurados, os mecanismos de manutenção do racismo perseveram sem a necessidade de ações deliberadas. Pessoas que frequentam escolas particulares (em geral, brancas) têm mais acesso a universidades, e consequente acesso maior a empregos melhor remunerados. Com isso, elas provavelmente terão mais acesso a cursos, onde conhecerão mais gente (branca) que poderá fazer parte de suas preciosas redes de contato e, quem sabe, indicá-las a um emprego ainda melhor. Elas também terão maior probabilidade de viver em bairros mais valorizados, onde estão menos expostas à violência urbana, e deverão viver, em média, mais perto de onde trabalham, o que ocasiona economia de tempo, que então abre mais espaço para o lazer. Enfim, o ciclo é infinito e se retroalimenta de maneira inerte. Ele não vai se quebrar sem ações (estatais ou não) que representem uma força contrária à tendência do ciclo (cotas universitárias pretendem-se um exemplo desta modalidade) e/ou sem a ativa destruição das normas que operam a manutenção da segregação (como a previsão em lei de prisão especial para deputados, senadores, pessoas com diploma e outras categorias). Qualquer que seja o caminho escolhido, ele se refere às estruturas.
Esta palavra – “estruturas” – diz respeito àquilo que nos atravessa a todos, ao que sustenta as relações sociais como estão postas. Não é preciso escolher entre a crítica aos atos de racismo ou às estruturas que performam a manutenção desta mazela, mas focar exclusivamente no gelo que está exposto causará acidentes graves.