Infame

“Hilda Hilst, Um Roteiro do Silêncio”: A Poeta Feminista

Em comemoração ao recente aniversário de Hilda Hilst, falecida em 2004, convidamos Mariana Portela para homenagear uma das maiores poetas da língua portuguesa.

Por Mariana Portela |  15 de maio de 2017

 

O louco estendeu-se sobre a ponte

E atravessou o instante.

Estendi-me ao lado da loucura

Porque quis ouvir o vermelho do bronze

E passar a língua sobre a tintura espessa

De um açoite.

Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz

À minha dura noite”.

                        Hilda Hilst

Os loucos me fascinam, Hilda. Assim como a ti. Tu, que tivestes o pai acometido pelas vozes silenciosas. Eu, com a minha escolha de profissão. Acho que nos encontramos na loucura: ela atravessa nossos abismos, inaudíveis.

Tinhas tanto medo de despassarar. Assim, não doaste teu útero a preparar outra pessoa. Eu abomino um mundo onde os loucos não tenham voz. Percebo, contudo, teu pavor: a sensibilidade é contaminada pelo sangue, talvez. E quantos de nós a escolheríamos, como perdição?

É curioso, poeta infame, encontrar-me contigo agora. Minha mãe te entrevistou, há 27 anos. Tu não suportavas os jornalistas, mas ela era tua cúmplice: poeta, inconclusa, apavorada pelos próprios dizeres.

Minha mãe me contou dos teus cinquenta cachorros. Ela me confessou que tu gravavas as vozes dos espíritos, no teu sítio. Tu não te assustavas com eternidades. Apenas a alma dividida sustentava os teus pesadelos. Eu sempre tive orgulho da entrevista que concedeste a ela, Hilda.

Agora, no ano que passou, encontrei-me contigo uma vez mais. Participei da antologia Senhoras Obscenas. Uma homenagem escancarada à tua poesia, desprezada.

Ao conversar com a idealizadora do projeto, Grazi Brum, entendi que a tua alma, Hilda, encharcava aqueles versos. A ideia das Senhoras Obscenas ultrapassava tua imagem, alcançando o feminismo. Tu não viveste para lutar pelos nossos direitos, querida.

No início de 2016, a universidade do sul da Califórnia destacou um dado assustador: as mulheres criadoras, no meio cinematográfico, não passavam os 20%. O YouTube, com esta informação, fez uma campanha em prol das vozes femininas: mulheres, naveguem por estes vídeos!

Senhoras Obscenas nasceu, assim, como resposta ao YouTube. Resgatar a poesia feminina. Dar voz aos versos das mães enclausuradas. Estimular as amantes marginalizadas. Reconhecer a poética que nos tem sido roubada, em séculos e séculos de silêncio.

O projeto estimula todas as mulheres a dizerem seus pensamentos. Declamar seus desejos. Ridicularizar os homens. Crescer, com as próprias melodias. Trouxeste, Hilda, o despertar das mãos que já não mais cozinham. Sem saberes, pudestes criar uma rede de afeto entre nós, arredias a quaisquer abraços. Iniciaste um tratado.

“Não há silêncio bastante para o meu silêncio”. O verso, escrito por ti, em 1959, talvez já abrigasse o trágico presságio das nossas poetas. Contudo, à revelia do destino, Hilda, tu escreveste pornografia, para emancipar as gerações que viriam enaltecer tua obra.

Hilda, tu precedeste nossas quimeras de liberdade. Rompeste o invólucro da jornada literária feminina. Escreveste teu nome, escândalo suplicante, em furor literário. E seremos todas pornográficas, se precisarmos destruir esses silêncios.

Para mais informações sobre o projeto Senhoras Obscenas, clique aqui.

 

Mariana Portela

Mariana Portela

Mariana Portela é psicóloga de formação. No entanto, sempre soube que a literatura dominava suas mãos e seus abismos. Cresceu rodeada por livros e paisagens de biblioteca. Foi estudar Comunicação em Lisboa. Descobriu que os olhos finalmente compreendiam a saudade, marejados pelo Tejo. Já participou de diversas coletâneas literárias. Sonha que um dia poderá sobreviver às custas de suas próprias palavras… Afinal, viver é fictício.