Hoje saí de casa por volta de 20h. À minha frente caminhava uma menina de 20 e poucos anos falando ao seu celular. Poucos metros nos separavam. Distraída em sua conversa, de repente, ela percebe que estou próximo e se vira na minha direção, com olhos arregalados e paralisada de medo. Até aí normal, vivemos em um país perigoso, em uma cidade perigosa.
Volto para casa ainda pensando nos segundos que interagi com a menina, que não conheço e, muito provavelmente, nunca mais verei. Ao entrar, vejo um motoboy entregando uma pizza a um vizinho. Esse de uma lado da gaiola e, do outro lado, o entregador passando as pizzas pelo espaço destinado a isso entre as grades. Ao subir, assisto ao jornal e vejo as notícias sobre as operações Lava Jato, Carne Fraca, o atentado em Londres, assim como a morte de 200 refugiados africanos, que fugiam de seus países e naufragaram na tentativa de atravessar o mar mediterrâneo.
Sim, vivemos momentos de insegurança: física, política, social, algo que não acontece só por aqui, mas em todo o planeta.
Detectores de metais, revistas, carros blindados e espaços fechados monitorados por câmeras já são parte da nossa rotina. Estamos habituados às catracas e crachás, mesmo em locais tão improváveis como uma universidade, em que não deveríamos esperar a restrição do acesso a pessoas interessadas em colaborar com o desenvolvimento do conhecimento daquela comunidade.
Diante dessas cenas cotidianas de qualquer cidadão do mundo, em especial de um brasileiro, me pergunto quando foi que deixamos de confiar uns nos outros para ter total confiança nas instituições e corporações? Quando passamos a ficar chocados ou sermos pegos de surpresa quando são feitas denúncias e investigações às grandes organizações, como frigoríficos, construtoras, Petrobras e nossos representantes em Brasília? Quando passamos a receber a pessoa que traz a nossa comida por entre barras?
No meu ponto de vista há poucas coisas tão íntimas quanto um prato de comida e com quem nos sentamos à mesa. Ainda assim, confiamos que os ingredientes, o preparo e o transporte foram seguros, mas a pessoa que nos entrega não. Essa pessoa é um risco, uma ameaça e devo recebê-la atrás de grades e com câmeras de vigilância, que inclusive são transmitidas ao vivo a todos os meus vizinhos no canal 154.
Alguns saudosistas dirão que antigamente era melhor, que assim como nos livros da geração beat, era só colocar uma mochila nas costas e estender o polegar na estrada, que se chegava a qualquer lugar, como no livro e, recente filme, On the Road, de Jack Kerouac. Ou como conta a série 70 e Tal veiculada no Canal Off, que mostra os surfistas brasileiros na década de 1970 e seus fuscas sem cinto de segurança, airbags e freios ABS, indo surfar nas praias virgens do litoral norte de São Paulo e na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Zygmunt Bauman falou da Vida Líquida, dos Tempos Líquidos e do Medo Líquido, sobre como a segurança é aquilo que nos constitui. E como a liquidez moderna, que é a incapacidade de algo adquirir uma forma fixa e duradoura, já que tudo muda o tempo todo, resulta na construção cotidiana de uma insegurança estrutural. Insegurança que combatemos diariamente desenvolvendo tecnologias e técnicas para nossa proteção. Foi-se o tempo em que nossos inimigos eram facilmente identificados como Darth Vader, o império e sua estrela da morte.
O antropólogo Anthony Giddens também escreveu sobre como o processo de modernização distanciou os indivíduos das noções de tempo, espaço e status, que ele intitula de Desencaixe. Para manter esse nosso distanciamento das coisas e das relações desenvolvemos tecnologias e instituições em que confiamos sem questionar, tornando então essa relação de confiança fundamental para manter as engrenagens girando. Em um mundo em que tudo é abstrato, intangível e virtual, diariamente aceitamos os termos e condições de serviços prestados a nós sem nem os ler, nos baseando na confiança nessas instituições, ou talvez nos órgãos de regulamentação que deveriam garantir nossa “segurança”. O Google, Facebook e a NSA, como disse Edward Snowden, agradecem.
Somos bombardeados de informações a respeito de como podemos ser mais focados, como tomar melhores decisões na carreira, como devemos querer muito tudo, ter experiências transformadoras, sermos implacáveis na entrega de resultados, cada dia mais disciplinados e eficientes. Ou como li recentemente, em como nos tornarmos os CEO’s de nossas vidas. Foda! Nos tornamos instituições de nós mesmos.
Ao mesmo tempo, temos alguns poucos momentos de alívio, em que podemos nos desarmar e nos fragilizar. A série Human, de Yann Arthus-Bertrand, o filme O Começo da Vida, de Estela Renner, ou as muitas palestras do TED, que, cada uma da sua forma, retratam nós humanos com nossas histórias, fraquezas, dúvidas, percalços e aprendizados. Assisti-los sempre me proporciona momentos de descompressão. Imagino que por isso não é à toa que tiveram visibilidade mundial, tornando-se assuntos recorrentes em nosso feed de notícias e nas rodas de conversa. Quem não viu a cena de José Mujica falando sobre o valor do tempo, por exemplo?
Sim, vivemos momentos de insegurança, mas não é pelos crachás que vestimos, pelas catracas e selos de aprovação que nos sentiremos mais seguros. Também não me parece que será por meio da curadoria de outros, seja um algoritmo ou uma lista dos 10 melhores, mais vistos, mais vendidos, mais mais, ou tantas outras corporações que se esforçam para filtrar o mundo e nos dizer o que é melhor. Também li outro dia que a vida é uma busca. Mas será que devemos terceirizar até essa busca às instituições? E se a gente começar a receber nossa pizza fora da gaiola?