Mais um daqueles dias frios, quentes, amenos – de ventos e falta de sombra – da Pauliceia dos protestos coloridos e dos grafites cinzentos. Eu estou com aquele documento de word aberto onde escrevo parcas linhas publicitárias cheias de trocadilhos, e vazias de essência, ou de alma caso queira chamar assim. Eu torço para uma janela de mensagens instantâneas apitar e brilhar para desviar a minha atenção por uns 15 minutinhos. Um quarto de hora para me tirar desse pandemônio.
Mas devaneio.
Sento em frente a duas mulheres loiras que reclamam do aglomerado de carros formados na marginal, enquanto decidem se dão um tempo na academia ou se descem para tomar um vinho. Sobrenomes de novos cristãos ou italianos. Olhos castanhos.
Traaaaaam. É um e-mail novo na caixa pessoal. “Deve ser um spam”, eu penso antes mesmo de notar o remetente. Não era pessoal. Não era algum familiar enviando novamente uma corrente – as correntes agora se espalham por murais de Facebook, era Matheus falando sobre uma nova proposta de tema para escrever: questão racional.
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“O que seria uma questão racial?”, eu penso antes mesmo de querer explorar o tema, adentrar uma pesquisa ou abrir um documento de Word para escrever uma crônica bem-humorada. Porque, sim, eu poderia pelo alto do meu privilégio branco, tentar inverter a tal questão de raças e deixar tudo bem humorado. Uma invertida de papéis.
Da superfície mais cristalina vem à minha mente a primeira opção: entrevistar um negro. Veja bem: um negro. Não um japonês. Não um índio. Nenhuma outra etnia.
“O que é questão racial?”, entre os muitos verbetes apresentado pelo Houaiss (pai dos burros, padrasto dos pseudo-intelectuais, mestre dos acadêmicos), questão é dificuldade teórica ou prática a resolver. Existem outros complementos como “questão de tempo”, “questão de vida ou morte”, “questão de Estado”, “questão de ordem”, entre outros. Mas, como é fácil de adivinhar após essa enumeração, não há uma questão racial.
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“Quem questiona evolui”, dizia a propaganda de uma faculdade de engenharia uns anos atrás.
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Vomito palavras sem acreditar no corretor automático digitei: questão racional.
Mas me adianto.
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Sentado diante do MacBook que está na minha mesa. O ar-condicionado chato, barulhento, frio, criando um ninho – uma bolha. Quantos negros eu vejo a minha frente? Nenhum. Com quantos posso falar abertamente sobre esse assunto? As interrogações são as fugas do escritor, pois elas não servem ao leitor, mas dão uma pequena vantagem para quem escreve conseguir adentrar o tema sem soar abrupto. Seco. E entrar em uma questão, que também não consta na minha consulta ao Houaiss, delicada.
Eu fui criado em parte pela minha avó materna, branca e nordestina, que era casada com um negro. O bairro era majoritariamente negro na parte de baixo da rua perto da favela do Madureira, enquanto subindo acima do número 600 as pessoas embranqueciam até chegar à escola pública mais próxima dali. Você olha as minhas fotos e cruza comigo na rua, logo pensa: um branco. Um loiro branco daqueles que, ao irem para a praia, chamam logo de camarão após algumas horas no sol. Esse nunca seria fruto de relacionamentos inter-raciais. Quando paro e penso sobre a palavra inter-racial, ela soa enganadora – para não dizer um xingamento. Ela é forte. É abrupta. É como se fosse uma palavra anti-natural assim como o que ela necessita explicar.
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Procurei a ajuda do negro mais engajado que conheço. “É engraçado como vocês me enxergam. Eu não me sinto ‘engajado’”, ele responderia mais pra frente após algumas conversas.
Esse negro, o qual não posso afirmar ser amigo ou apenas colega, é aquele cujas sentenças são longas e cheias de cólera. Ele conseguiria me exemplificar o que é questão racial. O que é ser negro. Sem ponto de interrogação invisível durante uma conversa limitada por um tempo determinado. Já imaginava as gesticulações típicas, e quase italianas, se é que posso usar esse tipo de ilustração; a voz gutural, a retórica afiada.
Fiquei horas esperando a confirmação dele para marcarmos um encontro e podermos discutir todas essas “questões”. Eu tinha certeza dessa confirmação. De um encontro que poderia tanto ser apático como um belo aprendizado.
“Bróder.”, ele começou após horas do meu pedido para uma entrevista-ensaio sobre a questão racial somada às religiões afrodescendentes. Ouvi seu sotaque carioca vindo à tona na minha mente com esse “bróder”. Fábio, o receptor que agora era emissor, nasceu no Rio de Janeiro. Nerd jogador de D&D desde a mais tenra idade, leu J.R.R. Tolkien, tirava 10 em quase todas as matérias, mas nunca recebeu sorrisos ou gracejos de “bom trabalho” dos seus professores. Imagine ser um garoto negro no meio do mundo do brancos, no mundo específico dos nerds brancos. Caucasianos retratados como heróis, descendentes de nórdicos. Reuniões desses nerds branquelos onde ele talvez fosse o Segundo negro do rolê dentre 30 ou 40 brancos, dois orientais.
Paro.
Como posso escrever como ele se sentia nesse meio?
“Por que você não escreve a partir do seu ponto de vista?”, a mensagem continuava, mas não era uma fala de desdém sobre branco sobre preto. Não era uma negativa. Fábio não declinava o meu convite para a entrevista-ensaio. O que ele queria era me questionar. Provocar, se quiser. Instigar um pensamento mais profundo do que o crítico, quase uma autodescoberta sobre mim. Sobre nós. Nós igual ao padrão. O padrão é branco. O abismo do existencialismo – seria esse termo e essa sensação criados pelo padrão?
Oi, meu nome é Felippe Cordeiro e eu sou branco.
“Se apresenta como homem branco. O ponto de vista do homem branco a respeito dessas questões.”
Eu, Felippe Cordeiro, branco, solteiro, terceiro grau completo – estudei em dois colégios particulares e duas universidades particulares, no Brasil e nos EUA respectivamente.
“O que é ser branco? O que é a raça branca? O que significa? Fale sobre o branco. Fale sobre você.”
Eu não tenho um ponto de vista sobre a questão racial. Falar sobre eu, Felippe Cordeiro, é montar um currículo das coisas que fiz e das coisas que eu quero.
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Fábio foi ator, dublador e entrou na faculdade de letras da UFRJ. Queria ser um escritor de fantasia, inspirando-se nas mitologias africanas e imaginários de heroísmo com rosto africano. Sobre seus antepassados, basicamente.
“Não é necessariamente ‘escrever sobre os meus antepassados’…”, essa interrupção vem de encontro a minha tentativa de desenhar uma mini-biografia antes de continuar o meu relato e tentar mantê-lo fiel aos acontecimentos digitais. “…embora seja (também). É que eu não escreveria isso que destaquei entre aspas porque é muito clichê do que se espera de um cara preto que escreve.”. Essa fatal citação entra em choque com várias questões de autor e obra – o que pode estender o assunto para outros assuntos como o feminismo, o machismo, o heroísmo, existencialismo, filosofia e uns tantos etc.
Questões. Eu sem o indicador perto da têmpora olhando para o nada. Aquela pose para passar um mínimo de seriedade ao refletir sobre a vida. Longe disso. Eu com os dedos no teclado – verborrágico – querendo a todo custo exprimir a questão. As questões.
Ele continua, “Eu escrevo ficção, ficção de heroísmo com rosto africano, essa é que é a minha pretensão. Mas é ficção. Ficção é ficção.”. Fábio transferiu seus estudos para São Paulo, onde, salvo engano, existe matéria de línguas africanas. Após anos escrevendo, editando e, acima de tudo, apresentando os originais para editoras. Fábio encontrou uma editora para levar o primeiro dos seus livros de fantasia para os leitores (propaganda boca a boca entre os amigos brancos, negros, nerds, metaleiros, leitores e tantos outros rótulos).
“Principalmente a pessoa branca não precisa de autorização”.
Eu, Felippe Cordeiro, nunca fui parado em uma blitz enquanto andava na rua. Meu maior medo ao falar da branquitude ou como gostaria de chamar “As Vantagens de Ser Branco”, em um claro trocadilho com o título de um livro sobre depressão, era como apresentar-me sem embasamento, apesar de vivido a vida toda como branco. Seria um estudo acadêmico e eu sem as credenciais necessárias para me isolar da questão teria armado minha própria arapuca: que questão?
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“É o chamado “medo branco”. Falo disso em um capítulo do livro. Enquanto os negros se encontravam em uma posição subalterna, o racismo existia, mas não assumia formas tão ostensivas, porque os negros não disputavam com os brancos o acesso aos bens públicos e a outras posições na sociedade – coisas que os brancos consideravam suas por merecimento.”
Lia Vainer Schucman tem uma tese de doutorado sobre a questão branca. “Entre o encardido, o branco e branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo”, esse é o título nada discreto de sua tese de doutorado que virou livro graças ao suporte financeiro da FAAP. Como o próprio sobrenome entrega, Lia é de família Judaica que não tolera nenhum tipo de discriminação devido aos resultados dos horrores da Segunda Guerra Mundial. É dela essa citação acima, não do Fábio. “Não lido mais com esses estereótipos. Tô de boa. As pessoas são diversas.”, essa sim é dele e não para simplesmente, “Raça é uma questão de percepção, uma questão social, e não uma questão biológica.”
A pesquisa sobre privilégio me fez chegar a Lia, desse ponto em diante eu estava na sinuca que não gostaria. Perceber o quanto todos querem discutir o outro lado da questão racial, a dos outros e não a criada pelo padrão. Quem criou a raça, a diferença, as hierarquias, a desconfiança ou a servidão? É uma questão racial, racional ou religiosa? A supremacia Ariana foi uma questão de religião ou de raça?
Tudo está emaranhado: do mais sutil racismo ao mais escancarado xingamento baseado nas diferenças de outrem. Se reconhecer como racista é uma tarefa árdua para quem procura responder a questão racial, das raças e não-raças, da quebra do padrão. Branco. Para quebrar os padrões entra a questão racional: o que é ser um privilegiado? Enxergar-se em um mundo de privilégios, longe dos olhos tortos, da desconfiança; das oportunidades. O privilégio começa quando você pode fazer listas sobre o que ser, sobre o que pensar, sobre como agir. Porque dentro do seu padrão existem inúmeras opções.
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Deitado, olho para o teto no breu do meu quarto ainda entorpecido das conclusões que não concluí. Se existem teses e antíteses sobre a raça e a não-raça, debates e agruras; o desfecho para esse autoconhecimento ainda está distante de mim, quiçá de todos nós. Martelo umas últimas palavras no ar, talhando um pequeno pedaço de madeira imaginário com o desfecho: “O racismo é uma problemática branca”. Conquanto, nunca seria essa minha última linha e, sim, uma de várias que encontrei ao pesquisar essa temática.
“Porque o mundo é branco. As diretrizes, os imaginários. A religião. E o que não é branco, então é embranquecido, para se tornar posse do branco.”, eita, Fábio! Você não se considera engajado, mas quando quer ainda povoa as minhas reflexões sobre a questão – com interrogação, exclamação mas cheia de reticências. Branco: a não-raça. Percebo ao olhar as fotos do meu avô materno: negro, nordestino, mas aos olhos dos outros eu não tenho esses traços – eu perdi a raça criada pelo padrão. Sou branco aos olhos do mundo. Faço parte do padrão de privilégios, de inversões, de estudos. “Como é ser um privilegiado?”, me pergunto. “Não sei…”, essa seria a resposta sucinta e sincera, apesar de “… sempre vivi dentro do padrão do privilégio.”. É como um jogo de xadrez, você que está de fora, observando por cima as peças dos dois jogadores pode prever quem vai ganhar, qual movimento cada um fará e, se não for de humanas, calcular as probabilidades da vitória para cada lado. Eu, dentro do padrão, não enxergo o padrão – ou o privilégio.
Desconstruir o racismo é estar de frente de um espelho, desnudo do poder. A discriminação não é porque o outro é diferente, o outro se torna diferente através da discriminação.
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A TV está desligada – não existe mais esse lance de estática, ou se está sintonizada em qualquer que seja o canal aberto ou pago, ou se está conectada à Netflix. Fecho os olhos. Não durmo.
“Estou exausto”, eu penso comigo mesmo – você consegue ler porque te deixei entrar dentro da minha cabeça nesse instante. Imagine o que penso e não falo. Desvios de assuntos quando se está exausto são normais. Se eu, Felippe, branco, padrão, estou com a mente a mil por ter essa questão na cabeça há algumas semanas. Pense em quem a tem há séculos…
Boa noite.