Na caixa de emails da ONG em que eu trabalho, entre algumas propostas comerciais e muitos pedidos de trabalho não remunerado, um email terrível: “Já sofri agressões (além de verbais) leves”, ela conta, “tais como tapa, pegou no meu pescoço com força. Até agora ele não agiu com violência contra minha filha, mas tenho muito medo que isso aconteça. Dependo financeiramente totalmente dele”. Como tantas de nós, ela conta que no começo ele parecia o homem dos seus sonhos.
Corta.
Estou na cama com meu marido – não posso crer, finalmente consegui convencê-lo a ver Aladdin! As areias do deserto daquele país inventado pela Disney revelam o herói com pinta de Pedro Malasartes. Ele não é como os príncipes xaropes de A Branca de Neve ou A Bela Adormecida. Na verdade, ele é um plebeu malandro de coração bom. Ele bem poderia estar de terno branco na Lapa carioca, e quem é que não simpatiza com um tipo desses?
Entram Jaffar e o Gênio e tudo vai bem. “Tá vendo, marido, como você tinha que ver?”. Até que entra Jasmine, a bela.
Jasmine, a bela. Jasmine, a bela. A bela, a bela, a bela. Mas, ei, espera! A Jasmine não era o máximo? Ela não era incrível? Não, não era. A princesa que eu queria ser era só bonita mesmo. Aqui e ali ela reclama de seu destino, chega até a dar uma fugidinha do palácio, mas decidir a vida mesmo que é bom, nada. Melhor terceirizar para o sultão. “Meu corpo, regras do papai”.
Que saco, hein, Jasmine! Uma vida orbitada em torno do casamento! Já pensou em aprender um ofício, depender do próprio dinheiro? Ou quem sabe ser uma princesa mais engajada, usar o cargo para dar visibilidade às questões sociais de Agra? Alô? Jasmine? Não estou te ouvindo, deu linha cruzada aqui! Espera, o que é isso? Ei! Esse email… eu conheço esse email! Jasmine!
E elas se encontram, a princesa que eu quis ser e a mulher que eu poderia ter me tornado.
Eu também já me apaixonei pelo homem que eu conheci once upon a dream. Minhas amigas me disseram que a vida era mais legal under the sea, mas eu escolhi me afastar delas e dos meus pais para ficar com o pseudo príncipe. E, quando ele me ameaçou com um canivete, eu também considerei uma agressão leve.
Há mais, há muito nessa linha cruzada. Sim, deve haver uma relação escusa entre Aladdin ter sido a maior bilheteria de 1992 e 54% dos brasileiros conhecerem uma mulher que já foi agredida pelo parceiro.
O que terá acontecido com você, Jasmine, depois que os créditos subiram e que a sua beleza cansou? Acaso você se tornou a moça do email? E agora, Jasmine? Qual a palavra certa pra te dizer agora, tantos anos depois, quando você já está toda marcada, mas ainda viva?
À moça do email eu disse que ela pode, se quiser, fazer uma denúncia na Delegacia da Mulher, e expliquei sobre as medidas protetivas que o estado pode oferecer a ela e à sua filhinha. Recomendei que se estiver mesmo grávida (“o pior de tudo”, escreveu, “é que estou com medo de estar grávida dele, preciso de ajuda”) e não quiser levar a gestação adiante, que procure ajuda imediatamente com a Women Help Women e com a safe2choose. Mas há outras como ela, há muitas outras, e é preciso fechar a fábrica.
É preciso – é urgente – que a gente reavalie esses sonhos que pensamos ser nossos. Eles não são nossos. Ser bonita é bacana, morar em uma casona é legal, mas será que se a gente pudesse sonhar com total liberdade, o tapete voador não nos levaria a um doutorado em outro país ou a um amor com outra mulher? Os pseudo sonhos se repetem em versões pseudo diversas, martelando sempre as mesmas maldições: casar é importante, ter amigas não; ser bonita é importante, independência financeira não; obedecer é importante, fazer perguntas não.
Por causa do sonho de mentira, muitas de nós chamamos uma festa em que usamos roupa branca de “o dia mais importante da minha vida”. Por causa dele, a gente desencana das nossas amigas e até da família pra ficar com o cara que escolheu (e que só pode ser má pessoa, porque quem se importa com a gente não deixa a gente se afastar de quem nos importa). A gente aprende – e essa talvez seja a lição mais cruel – que paixão é mais importante que amor. Confiança, lealdade, caráter…? Meio sem graça isso aí, hein? Você já experimentou uma noite de sexo ardente? Um jantar à luz de velas, flores, poemas? (O moço que me ameaçou com o canivete, por exemplo, fez uma música pra mim). E a gente vai escolhendo esses enredos, que são deliciosos, mas que duram o tempo de uma brisa. E de repente o canivete fura, a mão no pescoço aperta um pouco mais forte e voilá! Acabou-se o tapete voador.
Quando eu te vi de novo, Jasmine, eu te achei um porre, é verdade. Mas eu agora sei com quem estou falando. Você, Jasmine, você não é uma mulher. Você é uma ficção inventada para se tornar realidade. Mas há um pedacinho dentro de nós, Jasmine, que pode te escolher ou te declinar. Não é tarefa fácil, então que bom que não estamos sozinhas – você nunca teve uma amiga para uma conversa franca. Que bom que a moça do email não está sozinha, não é mesmo? Que bom que ela fez esse movimento de olhar a vida no espelho e dizer “isso está ruim. Eu não quero isso. Me ajudem”. A gente vai se ajudar cada vez mais, Jasmine. Pode avisar o pessoal do roteiro. Diz pra eles que o remake vai ser o bicho. Vai ser a whole new world.