Infame

Resistência Indígena no Brasil: Uma Arte Secular

Na semana do Acampamento Terra Livre, em Brasília, a ex-presidente da FUNAI nos traz um relato histórico sobre a opressão ao índio no Brasil (foto de Fábio Nascimento).

Por Guta Assirati |  28 de abril de 2017

Dai-nos um espelho, e seremos capazes de compreender a nossa própria história.

Século XXI – Brasília – 2014

Eu ouvia barulho de tiros. Eram disparos de bala de revólver. Enquanto ele, do outro lado da linha, ao telefone, relatava uma angústia desesperada diante do horror que se passava naquele exato instante. Naquele momento pistoleiros, jagunços, matadores profissionais, afrontavam a vida, e ameaçavam de morte, a mando de fazendeiros que se dizem proprietários de terra, todos os que estavam no local. Homens, mulheres, e crianças. Naquele exato momento, ele pedia que fizéssemos (nós da Funai) alguma coisa. Ele pedia por socorro a todas as famílias de sua comunidade. Ele é uma liderança indígena que pertence a um Povo de nome Kaiowá. Ele vive no estado do Mato Grosso do Sul, em uma pequena área retomada de seu território tradicional, que como tantos outros, fora e continua indevidamente invadido por brancos. Naquela noite, depois daquele exato momento, minha atitude estarrecida, minhas mãos trêmulas, minha boca seca, e meu juízo atormentado, telefonaram para “grandes chefes brancos” para “exigir” a segurança que compete ao Estado brasileiro numa situação da espécie. Mas, já à altura sem muita surpresa, encerro a série de telefonemas com a triste certeza de que nada seria feito para impedir o prosseguimento da barbárie. Nenhum de nós (exceto, provavelmente, as autoridades contatadas) dorme durante aquela noite longa, que termina com o amanhecer de mais um dia de esperança em meio à guerra. O atentado limitara-se ao campo do terrorismo intimidador. Naquela noite não houve nenhuma morte. Nem sempre é assim. Aliás, quase nunca. No Mato Grosso do Sul, a equação entre ser indígena e estar vivo, exige um sacrificante exercício cotidiano, empreendido há séculos, por meio da combinação entre sabedoria, coragem, resistência, e força espiritual.

Século XVI – Bahia – 1500

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas (…) Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram (…) Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.” Trecho da Carta de Pero Vaz Caminha a El Rei D. Manoel I.

Século XX – Mato Grosso – 1952

As terras em questão, não interessam aos índios, que, aliás, não se encontram mais nelas; são devolutas e por nenhum título a cargo do SPI (…) o essencial, que é não possuir nenhum documento relativo às terras onde estiveram umas poucas famílias indígenas (…) aqueles infelizes. E como constituirão um grupo caminhando para a extinção (…), jamais fui impulsionado a visita-los, ocupado que me achava com problemas bem mais urgentes (…)”. Trecho de carta enviada pelo coronel Nicolau Bueno Horta Barbosa, ex-chefe da IR-5 ao amigo Wilson Barbosa Martins, candidato ao Senado Federal, interessado, à época, na compra das terras já reconhecidas anteriormente como área de ocupação tradicional indígena do Povo Ofaié.

Século XVIII

Como eram e são tão bárbaros, e destituídos da razão, não trataram de Escritura, ou de outros monumentos em que recomendassem à posteridade as suas Histórias para que dela víssemos os seus Principados, alianças, Pazes, e discórdias de soberanos, sucessos de Estados, conquistas de Províncias, defensas de Praças, admirássemos vitórias e perdas de Batalhas, e todo o memorável com que a fortuna e a política vão sempre, com os séculos, acrescentando às Histórias das Monarquias. Por esta Cauza, ignoramos o que se conhece de todas as outras Nações do Mundo (…)” Ignácio Barboza Machado, Exercícios de Marte, 1725.

Embora os registros existentes não permitam uma afirmação precisa, chegou-se a estimar que no território que corresponde ao que hoje chamamos América do Sul, viviam populações que somavam cerca de 9 milhões de indivíduos.

Essas populações, desde então, foram sendo vítimas de extermínio por meio do emprego de toda sorte de violências fatais perpetradas contras suas vidas e culturas.

Século XXI – Mato Grosso do Sul – 2012

Uma das inúmeras comunidades Kaiowá, que há anos aguarda o reconhecimento de suas terras pelo Estado brasileiro, e que por isso não pode contar com escolas que sirvam à comunidade, teve que matricular suas crianças em uma instituição do município mais próximo, frequentada, majoritariamente, por alunos não indígenas. Pouco tempo depois, as crianças Kaiowá tiveram que abandonar a escola, vítimas de práticas racistas por parte de “colegas” brancos. Crianças brancas, filhas de pais brancos, descendentes de famílias brancas que, por gerações e gerações, reproduziram a herança de um processo de formação baseado em valores coloniais, ligados ao ódio e à segregação. Ao interceder pelos indígenas, a Funai foi comunicada pela direção da escola, de que nada podia ser feito. O cheiro das crianças Kaiowá estava incomodando os demais alunos, e para evitar maiores constrangimentos, era melhor que procurassem outra instituição de ensino.

O Estado do Mato Grosso do Sul, segundo o IBGE, é o segundo na lista de maior população indígena, precedido apenas pelo Amazonas. O mesmo Mato Grosso do Sul, onde 83% do total de terras privadas constituem latifúndios, segundo o Atlas Agropecuário de 2017, lidera o hanking de Estados com maior concentração de terras no Brasil. É nesse Mato Grosso do Sul, que se desenrola o martírio (adoto a irretocável expressão que dá nome ao filme de Vincent Carelli sobre o tema) que a insustentável situação de confinamento territorial indígena impõe todos os dias, sobretudo ao Povo Kaiowá. Suas consequências: a desagregação, a doença, a violência, e a morte. Genocídios. Violações bárbaras conhecidas mundialmente. Menos noticiadas e tratadas no Brasil, no entanto, que as tragédias operadas contra os refugiados sírios. Mais fácil compadecer-se da dor do que está longe? Ou mais difícil enfrentar a naturalizada violência colonial e capitalista praticada por nossos próprios algozes. As terras indígenas regularizadas no Mato Grosso do Sul ocupam 1,64% da superfície total daquele Estado, onde vivem 149 indígenas por km², contra apenas 6,86 não indígenas por km². Campos de concentração criados pelo Estado brasileiro para desobstruir os caminhos para o mercado operado pelo capital.

Século XX – Brasília – 1987

Os senhores não terão como ficar omissos(…) a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena. (…) não colocam em risco e nunca colocaram a existência, sequer, dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas (…) somos o alvo de uma agressão que pretende atingir (…) a nossa confiança de que ainda existe dignidade, de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar (…) aqueles que não tem o dinheiro para manter uma campanha incessante de difamação (…) Um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas. Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão (…) O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso”.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte, Ailton Krenak, liderança firme de voz mansa, choca o Brasil ao pintar o rosto com jenipapo na tribuna do Congresso, enquanto profere discurso histórico (de que é parte o trecho acima) em defesa da aprovação de dispositivos que assegurariam constitucionalmente direitos aos indígenas.

No ano seguinte, 1988, a Constituição Cidadã, marco jurídico da suposta redemocratização do país, é promulgada, contemplando dois dispositivos (artigos 231 e 232) relacionados a direitos indígenas. Embora muito aquém do que era possível garantir, o fato foi comemorado uma conquista, alcançada pela luta política travada pelos próprios indígenas.

Século XXI – 2010

Pela primeira vez, o IBGE coleta informações referentes à diversidade dos povos que vivem no Brasil. O levantamento marcou, ainda, a retomada da investigação por órgãos públicos no país sobre as línguas indígenas. A paralisação desse tipo de pesquisa por mais de 50 anos escancara o profundo desconhecimento de uma sociedade a respeito de sua própria identidade.

Hoje no Brasil, registra-se um total que varia entre 800 e 900 mil indígenas, depois de um trabalhoso processo, iniciado somente no século XX, de investimentos em ações e políticas voltadas à recuperação demográfica dessas populações, que vinham sendo drástica e sistematicamente reduzidas desde o início do período colonial.

De acordo com dados do órgão, hoje há registro de 305 diferentes povos e de 274 diferentes línguas indígenas no Brasil.

Século XXI – Brasília – 2013

A então Ministra Chefe da Casa Civil do Governo Federal, em audiência pública da Câmara Federal, em um plenário repleto de ruralistas, defende a alteração pelo Governo Federal das regras de demarcação das terras indígenas no Brasil, para que outros órgãos públicos pudessem influenciar nos processos demarcatórios. Na mesma ocasião, manifestou-se favoravelmente à tese do marco temporal, uma interpretação do artigo 231 da Constituição Federal (aquele que ficou aquém do que se podia garantir), criada por Ministros do Supremo Tribunal Federal para mitigar direitos territoriais indígenas. No mesmo ano, solicitou ao Ministro da Justiça a paralisação de processos de demarcação de terras indígenas nos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul, e Mato Grosso do Sul. E, mais tarde, determinou que todas as demarcações de terras indígenas no Brasil fossem paralisadas. Essa situação ficou conhecida como “o embargo das terras indígenas do Governo Dilma”.

Ganha força o discurso vazio de “muita terra pra pouco índio”. O Congresso Nacional, instigado e apoiado pela bancada ruralista e por setores anti-indígenas, reativa o debate em torno da alteração dos dispositivos 231 e 232 da Constituição Federal (aqueles que ficaram aquém do que se podia garantir), com o claro intuito da extinção de qualquer garantia territorial em favor das populações indígenas no Brasil. Parte da estratégia de extermínio da colonização, iniciada no século XVI, que também permanece ainda em curso.

Afirma-se, atualmente, que cerca de 13% do território nacional é composto por áreas reconhecidas como terras indígenas, o que apenas em parte é verdade. Cerca de 8% do total de áreas regularizadas no papel em favor dos indígenas não está em sua posse plena. Isso significa que muito mais de 87% das terras que eram originalmente indígenas, permanecem em mãos não indígenas, e boa parte desse percentual de terras jamais tornará a permitir ocupações tradicionais indígenas. Quase 99% das áreas demarcadas no Brasil concentram-se na Amazônia Legal, levando cerca de 40% da população indígena dos estados do sul, sudeste, e parte do centro-oeste e nordeste, a viverem em pouco mais de 1% da superfície demarcada restante. Quase a metade das terras que compõem o território brasileiro estão concentradas na posse (de legalidade duvidosa ou flagrantemente ilegítima) de 1% da população.

Para o agronegócio, o mercado, os agentes dos setores capitalistas em geral, a terra é um ativo de valor econômico, um objeto a ser apropriado, um item do patrimônio. Para os atores desse campo, a terra vale muito, custa caro. Mas para os indígenas, a terra vale o preço da vida. É com a vida que os indígenas pagam a defesa de sua relação com a terra. A terra, para eles, é a vida. A terra é o próprio ser indígena, enquanto ele é a própria terra. Em outro plano, mais objetivo, é preciso lembrar que qualquer equipamento ou serviço público (à exceção daqueles desempenhados pela Funai), seja relacionado à saúde, educação, infraestrutura, ou fomento a atividades produtivas, somente pode ser ofertado a uma comunidade indígena, dentro da aldeia, quando sua terra está, ao menos identificada como tal pelo Estado.

Século XX – Pará – 1989

Tuíra Kayapó passa o terçado no rosto de José Antônio Muniz Lopes da Eletronorte, em protesto contra a construção de Kararaô, hoje denominada Belo Monte. A cena foi registrada por fotografia que se tornou imagem emblemática da luta em defesa do Rio Xingu.

Século XXI – Brasília – 2015

O Governo Federal concede licença de operação para funcionamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, responsável pela barragem de um dos mais ricos rios em diversidade cultural e biológica do planeta, o Xingu, afetando de forma irreversível a vida de 10 povos indígenas. O licenciamento da obra foi objeto de dezenas de ações judiciais relativas a impactos e condicionantes nunca cumpridas. Ao longo de seis anos, a Norte Energia, responsável pela obra, já foi multada em mais de 60 milhões de reais por infrações, crimes ambientais, reporte de informações falsas, entre outras irregularidades.

Século XXI – Brasília – 2017

Em março deste ano, a imprensa publica entrevista em que o atual Ministro da Justiça, Osmar Serraglio, ruralista declaradamente anti-indígena, relator da emenda constitucional que revê o artigo 231 da Constituição Federal, visando aniquilar os direitos territoriais indígenas, afirma que “terra não enche barriga”. Quis referir-se, naturalmente, à barriga dos índios, já que latifundiários do agronegócio acumulam, também por meio da concentração de terras, o patrimônio e a riqueza que sustentam há cinco séculos a causa da doença mais grave de que padece nossa sociedade, a desigualdade.

No último 19 de abril, me pedem que escreva um texto curto sobre a questão indígena no Brasil. Digo não. Não comemoro o “dia do índio”, data fabricada para que alguns finjam lembrar uma existência que o mundo opera para apagar, utilizando-se de mecanismos engendrados por hegemônicos valores etnocêntricos.

Povos indígenas existem. Sobrevivem. Resistem. Lutam. De 24 a 27 de abril, o movimento indígena realiza mais um Acampamento Terra Livre em Brasília. Mobilização anual, onde se discutem as principais pautas referentes a seus direitos e estratégias de luta por seu cumprimento, buscando apresentar aos representantes dos poderes instituídos suas demandas. Na primeira tentativa de diálogo esse ano, indígenas são recebidas por forças armadas do Estado brasileiro, a balas de borracha, gás lacrimogêneo, e spray de pimenta.

O primeiro dia de mobilização é também marcado pelo lançamento de uma música que apoia a campanha “Demarcação Já!”. Homenagem de mais de 25 artistas aos povos indígenas no Brasil, apoiada por organizações não governamentais.

Finalmente, durante a mobilização, escrevo o texto. Ele parece longo… Impossível falar desse assunto em poucas linhas. Impossível falar da história de mais de quinhentos anos de opressão e sofrimento das nações que fazem parte de meu universo, de minha própria história, da maneira como sempre fez a História, em poucas, e muitas vezes inverídicas, linhas. Isso tudo que aqui foi contado, é mais um exercício (muito singelo, muito recortado, muito aquém do necessário) de expressão de nossa memória, de nossa identidade. A história dessa gente é a nossa própria história. E os caminhos dessa história (desastrosos até hoje) somente encontrarão a confiança que reclamou Ailton Krenak em 87, pelo resgate de nossa memória. Até lá, seguiremos inanimados, trancados entre as grades de nossa própria ganância, ignorância, ou indiferença, vagando na escuridão dos tempos mortais – que já duram cinco séculos – onde o valor econômico de um par de hectares de terra justifica a anulação de nossa própria existência.

Foto de Fábio Nascimento © / Mobilização Nacional Indígena (MNI)

Guta Assirati

Guta Assirati

Guta Assirati é mulher, indigenista, escritora, advogada. Atua e milita na defesa de direitos indígenas, sociais e humanos. Presidiu a Fundação Nacional do Índio – Funai nos anos de 2013 e 2014. É autora do livro Por entre rios – Umas palavras.