Andar pelas ruas de Havana é uma experiência que distorce o tempo, inunda os sentidos de estímulos e convida a reflexões.
Nos primeiros instantes na capital de Cuba tive a impressão de ter voltado ao passado. E essa sensação acontece não apenas por referências como as roupas de uma moda de outrora, os carros antigos ou seus prédios históricos. Depois de um tempo de observação percebi algo no compasso da população, nas dinâmicas sociais e seus personagens.
Tudo é cadenciado, as pessoas andam calmamente ainda que tenham olhares astutos. Pelas ruas e calçadões há muitas crianças brincando, há muitos sorrisos e as pessoas falam alto. Os mais velhos repousam, observam e contam suas histórias. Favorecidos pelo agradável clima, as pessoas ocupam as ruas até altas horas da noite.
Percebi mais espaço para os detalhes e para as nuances do cotidiano, maior presença no aqui e agora. O cubano é um povo espirituoso e bastante pacífico, com uma cultura riquíssima, resultado de uma grande miscigenação.
Um dos expoentes dessa cultura, a música cubana, tem raízes nos ritmos africanos e está presente por todos os lados. Principalmente na região central de Havana, grupos de músicos se espalham a cada esquina. Em cafés, restaurantes e praças, executam seus números atraídos pela massa de turistas. Não raro um cubano de passagem é tocado pela melodia e põe-se a dançar.
Curioso é o leve aroma de charuto que paira no ar. Cuba detém título de melhor produtor do mundo há décadas. Quando esse aroma cessa é substituído pela forte maresia vinda do mar caribenho e, eventualmente, por uma salva de fumaça vinda dos escapamentos dos carros antigos.
As ruas são tomadas por veículos americanos das décadas de 1940/50, perfeitamente funcionais, discretamente barulhentos e de trânsito lento. Eles compõe harmoniosamente com as cores e os contornos suaves das edificações e casarões que datam desde o período colonial espanhol do século XVI, até a art deco do período republicano.
Andando pelas ruas ficava muito claro que eu era estrangeiro e o cubano se interessa muito pelos estrangeiros, não medem esforços para abordar e interagir. No início, confesso, fiquei meio incomodado e até receoso com as intermináveis aproximações. Como as ruas mais centrais são tomadas de gente, ao esquivar de uma abordagem na esquerda já havia outra vinda pela direita. Mas resolvi dar abertura.
Os cubanos passaram décadas sem poder deixar o país caso não obtivessem uma permissão oficial para tanto, além de fazê-lo ser praticamente inviável financeiramente. Então, é com os estrangeiros que eles aprenderam a experimentar outras culturas. A maioria deles me olhava de maneira curiosa como se eu fosse um portal através do qual eles podiam ver além dos mares.
Claro que houve aqueles que pediram um litro de leite ou mesmo um $1 CUC – moeda exclusiva para estrangeiro que vale cerca de $25 pesos cubanos, na realidade deles uma pequena fortuna; mas não havia violência. Me senti muito seguro andando por lá, a presença policial é discreta e nas palavras de um cubano: “ninguém é louco de cometer um furto ou assalto, sob risco de perder a cabeça”. Não à toa que o governo cubano tem sido acusado de inúmeras violações dos direitos humanos, incluindo tortura, detenções arbitrárias, julgamentos injustos e execuções extrajudiciais. Além disso aos cubanos são sistematicamente negados direitos fundamentais de livre expressão, associação, reunião e privacidade. Obviamente que o governo nega essas acusações e se esforça para não noticiá-las. De fato, há muitos contrastes nessa ilha.
Em meio a essas contradições veladas, impressiona o nível de educação do povo. De maneira geral o povo é amistoso e bastante articulado. Reflexo de uma sociedade onde a educação é levada a sério, 99.8% da população, acima de 15 anos, sabe ler e escrever. Por outro lado, Cuba tem um dos índices mais baixos de posse de computador do mundo e o direito de acessar a internet é monitorado e provido por caros serviços do governo.
Vivenciando o dia a dia dessa sociedade tão peculiar, as reflexões e comparações com a nossa realidade são inevitáveis. E o fato que ficou mais evidente para mim é que, no geral, as pessoas nas sociedades capitalistas do século XXI vivem sob exagerada pressa. Algo que eu já sabia em conceito. Mas ao experimentar esse cotidiano em outro ritmo, ficou claro que do lado de cá, há algo errado. As pessoas têm urgência de crescer, ter habilitação, entrar na faculdade e ter um trabalho. Aí passam a ter pressa para chegar no trabalho e depois pressa para chegar em casa. Anseiam pelo final de semana, pelo feriado e então pelas férias. Por que, de maneira geral, desenvolvemos tamanha ansiedade?
Claro que responder a essa questão não é tarefa simples e teria que envolver diversas ciências, estudos, teses e não é o objetivo desse texto. Mas estando em Cuba, percebi uma circunstância em particular: onde não há capitalismo, não há consumismo e, por consequência, não há razões para haver propaganda. E essa rara combinação resulta em calmaria para a mente.
Vivenciar a escassez de propagandas e comerciais é uma experiência prazerosa e libertadora. Minha percepção ficou livre das marcas abusadas que utilizam de comunicação invasiva, onipresente, obtusa e, muitas vezes, fantasiosa e mentirosa. Nenhum famoso para me lembrar que a minha TV é de um modelo antigo ou que deram um tapa no desenho do meu carro e agora ele ganhou um “novo” antes do nome. Nenhuma família em estado de felicidade utópica no café da manhã saboreando pão com margarina. Nenhum galã seminu tentando me convencer que a razão de tamanha beleza é aquele shampoo que ele segura nas mãos. Talvez por essa situação em particular, assistir a vida cotidiana na sociedade cubana tenha sido uma experiência única e intensa.
É claro que a eles falta muita coisa. Direitos básicos, itens de conforto e de bem estar, acesso a tecnologias e à livre comunicação. A eles, falta a liberdade de ir e vir e o direito de explorar novas terras e culturas. No entanto, também percebi que não somos tão livres quanto pensamos. Não estamos livres dos padrões de beleza e de comportamento, desde pequenos somos estimulados a competir e acumular capital. Cada qual em determinado grau, mas não estamos livres do consumismo, da cultura da aparência e status.
Mas toda a peculiaridade dessa sociedade está por um fio. Cuba começa a experimentar o que talvez seja a maior transformação desde a Revolução Cubana de 1959.
A morte de Fidel ocorre num momento de reaproximação com os EUA e com isso, a situação política e econômica provavelmente se abrirá. Nesse micro-sistema econômico e social há um equilíbrio delicado, a tendência é Cuba voltar a ser local de veraneio para o americano (como foi até a década de 1950), que por consequência irá despejar muitos dólares por lá. As desigualdades sociais irão surgir, com provável expoente daqueles em atividades ligadas ao turismo. A iniciativa privada irá eclodir, os marketeiros irão enxergar um potencial mercado consumidor. Cabe ao governo cubano ser capaz de segurar as rédeas da situação. É imprescindível que tenham aprendido com os erros e acertos do passado e então encontrem um meio termo, ou adotem um plano de transição, de forma a manter sua sociedade estruturada.
Ao povo cubano, desejo sorte. Que o desenrolar dessa transição seja positivo, que se preserve as conquistas sociais e se proteja todas as riquezas culturais e ambientais desta bela ilha caribenha.
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