Infame

Eu Desejo que o Meu Melhor Amigo Morra: Confissões de Uma Rua (Quase) Sem Saída

"Eu penso em sua mãe chorando. As folhas dos livros se tornaram asas para minha fuga diária da rua sem saída. Asas movidas pelo sangue que meus pais davam para pagar a escola particular".

Por Danilo Souto |  25 de abril de 2017

Eu desejo que o meu melhor amigo morra. Nós somos vizinhos desde os dois anos de idade, moramos na mesma rua sem saída no que se pode chamar de a vida inteira. A nossa rua sem saída é especial, mais estreita que uma rua normal. Péssima para os carros passarem, ótima para as crianças brincarem.

Eu não entendo como ele ainda está vivo. Nossa rua tem cimento no chão, não asfalto. O final dela é fechado por um imenso portão azul — duas chapas de metal de seis metros de altura. O chão com o cinza das nuvens, o portão com o azul do céu. O paraíso. Nós tomávamos sol pela manhã encostados nos muros das casas. As chapas de metal trovoavam quando a bola as atingia durante o nosso futebol. O firmamento tremia. O guarda da escola por trás dos portões vinha reclamar às vezes. Um anjo protegendo outras crianças.

Eu pergunto para um policial se seria difícil sumir com ele. Meu melhor amigo tinha coisas legais, bolas de capotão, videogames, bicicletas, churrascos, aulas vagas na escola pública. Eu tinha uma bola dente de leite, um videogame pior, uma bicicleta menor, menos festas, mais metros para caminhar até a escola particular. Ele dividia o que podia comigo. Eu queria minhas próprias coisas legais. Eu não entendia como os pais dele conseguiam dar de tudo e os meus, nada. Eu tinha ódio.

Eu imagino seu corpo baleado por trás. A extroversão do meu melhor amigo trouxe mais amigos para a nossa rua sem saída. Minha introversão me afastou das novas amizades. Minha introversão e a violência daquele grupo, a zombaria, os maus hábitos, a malandragem. O paraíso se desmanchava.

Eu penso em sua mãe chorando. As folhas dos livros se tornaram asas para minha fuga diária da rua sem saída. Asas movidas pelo sangue que meus pais davam para pagar a escola particular. Eu não tinha coisas legais, eu não tinha mais meu chão de nuvens. Eu não olhava aqueles demônios nos olhos na volta de cada voo. Eu tinha ódio.

Eu vejo seu pai se culpando. A cada voo eu chegava mais longe — faculdade, cinema, emprego, sonhos, teatro, parque, outra faculdade, outro emprego, outros amigos, outros sonhos. A cada bater de asas suado eu via meu melhor amigo cercado de mais demônios, mais vícios proibidos, mais gritos durante a noite, mais brigas, mais batidas policiais na rua sem saída, mais chances de me punirem por engano. O portão azul ganhava pichações. Eu tinha ódio.

Eu acho que não iria ao seu enterro. Não acho que bandido bom seja bandido morto. Não acho que viciados são vagabundos. Sou bondoso para as questões do mundo. Ainda assim, cego na minha própria vida, eu desejei que o meu melhor amigo morresse por anos. Invejei as coisas legais que ele tinha e não dividi meus livros. Estranhei as pessoas que chegaram e não mostrei que eram más companhias. Vi a vida se deteriorar e não avisei sobre o que acontecia ao nosso paraíso. Covarde, voei para longe e agora ele está preso para sempre no inferno da rua sem saída. Ele está lá a qualquer hora do dia, moribundo, preso aos vícios, preso aos demônios. Preso. Ele está condenado à rua sem saída. Maldição, eu não queria que ele morresse lá. Ele nunca encontrou a saída, eu não mostrei onde ela estava. Não pude salvar o meu melhor amigo. Não tentei. Eu tinha ódio. Eu deixei o meu melhor amigo para morrer — isso vai me sangrar para sempre.

Eu quero o meu melhor amigo de volta. Eu sou uma vergonha. Sequer consigo dizer o seu nome.

Danilo Souto

Danilo Souto

Danilo é formado em gestão de produção e em comunicação social. Atualmente, é redator e analista de identidade verbal na área de branding. Permanentemente, é escritor, porque algumas coisas só saem da mente como palavras.