Infame

“Lá Eu Tinha Vontade de Viver Mais”: Quando a Gente Ama um Lugar

“Depois das primeiras idas, nunca mais fiquei menos de 1 mês. Nunca mais. Voltava todo ano. Depois de um tempo, passei a ir mais para Dahab do que para o Brasil. Fiz isso por muito tempo. Fazia sentido para mim".

Por Pedro Arieta |  14 de abril de 2017

“Dahab é conhecida por ter uma atmosfera meio relaxada. Extremamente relaxada, aliás. Por isso que eu me apaixonei. Sim, foi exatamente isso que aconteceu lá. Me apaixonei”.

É claro que o Pedro, autor da frase, não se referia àquela atmosfera sobre a qual aprendemos nas aulas de geografia, mas sim à atmosfera sentimental, espiritual, que depende de pessoas para ser criada. Ao fazê-lo, acabou dando sua primeira dica a respeito do motivo pelo qual se apaixonou: as pessoas de Dahab, pequena cidade da costa egípcia.

“Estava fazendo um mochilão pelo Oriente Médio, com o meu melhor amigo. Colocamos Dahab no roteiro por causa do Jacques Cousteau. Ouvimos falar que ele dizia ter passado as horas mais felizes de todos os mergulhos da sua vida em Dahab. Um cara como Jacques Cousteau não pode estar errado, né?”. Só naquela primeira viagem eles postergaram sua saída da cidade por duas vezes. Sempre aparecia um mergulho novo para ser feito.

Pedro Arieta é um fotógrafo brasileiro radicado em Nova York há uma década e que adora começar suas menções apaixonadas a Dahab reiterando quantas vezes for necessário que “dahab”, em árabe, significa “ouro”. Visitou a cidade pela primeira vez em 2004. Acabou voltando 12 vezes.

No mochilão, passaram por diversos lugares cuja beleza sempre foi ostensivamente reconhecida ao redor do mundo, como Petra na Jordânia ou as pirâmides do Egito. Mas nenhum deles os tocou como Dahab. Nem de perto. Revela lembrar de, logo no primeiro dia, caminhar sem destino pela cidade, observar seu ritmo peculiar e pensar, sozinho ou talvez dizendo em voz alta para seu amigo: “Isso aqui é diferente”, esforçando-se para entender segundo critérios mais cartesianos as razões daquela particularidade.

A maioria das pessoas que passou por lá concordaria com ele e não hesitaria em alçar Dahab à condição de lugar especial. “Lá as águas são muito azuis. Só que verdes também. É uma coloração diferente, ressaltada ainda mais por aquilo tudo estar bem ali ao lado do deserto”, diz ele com o cuidado descritivo de um fotógrafo. Seu principal encanto, porém, sempre esteve ligado àquilo que não estava submerso. “Já visitei muita cidade de mergulho. Nenhuma delas me fez sentir o que senti aquele dia”.

Pedro e seu amigo passaram alguns dias perguntando-se porque aquele lugar não tinha a fama que merecia. Havia sim algumas fotos na internet relacionadas ao universo do mergulho, mas até então ninguém havia pensado em virar a câmera para o lado da praia, e então para depois da praia, para o resto daquela cidade. Uma cidade “até que famosinha”, nas suas palavras, mas só metade famosinha, uma fama que ocultava seus moradores, atrações ainda maiores, localizadas em terra seca.

Perguntado sobre seus retornos, depois de ficar em silêncio, respondeu baixinho, talvez suspeitando que havia algo de clichê naquela afirmação, numa vergonha relativa que não foi suficiente para conter sua declaração de amor: “A vontade de voltar vinha do coração. E isso é importante pra um fotógrafo: vir do coração”.

Começou a tirar retratos de pessoas, especialmente dos moradores, na segunda visita, em 2005. E o fez porque sentia que, ao vê-los uma segunda vez, dava início a relacionamentos com cada um deles. A certa altura percebeu que retornava muito mais pelas pessoas de Dahab do que pelos mergulhos e praias. Queria revelar o cotidiano do lugar. Tirava lindas fotos de paisagem, mas só via graça em seus retratos. Foi assim que passou a conviver com a crença de que as pessoas que decidiam morar lá eram especiais, não importava de onde viessem: estrangeiros, egípcios, beduínos.

“Fiz questão de voltar para o mesmo hotel. Todas as vezes. Hotel que, na verdade, era meio que uma casa. Lá em Dahab todo mundo faz isso: sempre voltam para o mesmo hotel em que ficaram a primeira vez”, completou homenageando essa noção de continuidade, de compromisso, rara em turistas e necessária para os relacionamentos de longo prazo.

Desde a primeira vez ficou satisfeito com o resultado das fotos. Mas voltava por sentir que ainda havia algo a ser feito ali. Em suas estadias, mais de uma vez se viu tentando explicar o que sentia ao visitar Dahab, muitas vezes perguntado pelos próprios locais, curiosos para saber seus motivos. “Nunca sabia responder direito. Sentia coisas difíceis de serem racionalizadas. Por isso eu queria falar pelas fotos, por meio delas. E aí que comecei a dar essas fotos de presente para eles. Era meio que um jeito de dar algo em troca. Um jeito de responder”.

Mesmo entre os egípcios, a maioria dos moradores não era originalmente de lá. Quase todos mudaram-se por causa da indústria do turismo e mergulho. Entre os estrangeiros, havia um padrão claríssimo de pessoas que retornavam, que também se viram apegadas ao lugar. “Eu sentia que aquele lugar no meio do nada trazia um pouco de todos os outros lugares dentro de si”.

Em 2006, pouco antes da terceira visita, Dahab e outros locais da Península do Sinai famosos por receber turistas foram alvo de atentados terroristas. Depois dos eventos, o fluxo de visitantes passou a diminuir. Com a queda do turismo, investimentos do setor hoteleiro foram cortados. “Tem uns 10 esqueletos de hotéis de luxo espalhados por lá. Imensos. Gigantes. Parecem umas ruínas, só que modernas. Muita gente estava investindo grana lá antes disso”.

Por continuar voltando mesmo depois das bombas, sentiu que o acolhimento por parte dos moradores intensificou-se ainda mais. Na tentativa de traduzir suas palavras, talvez possamos dizer que onde havia paixão, nasceu o amor. “Depois das primeiras idas, nunca mais fiquei menos de 1 mês. Nunca mais. Voltava todo ano. Depois de um tempo, passei a ir mais para Dahab do que para o Brasil. Fiz isso por muito tempo. Fazia sentido para mim. Aliás, o contrário é que não faria sentido: parar de ir. Era meio como se tivesse família lá. Não conseguia achar que tinha acabado; acabado o que fazer por lá. Sempre tinha alguém a mais para ser visto, fotografado. Era como se, depois de uma briga, eu tivesse levado aquilo para o lado pessoal. Depois da crise turística, sentia que tinha que tomar uma posição, ficar ao lado de alguém. E óbvio que resolvi ficar ao lado deles”.

Pedro confirma que demorou bastante tempo para colocar-se diante da sua câmera, como podemos observar neste ensaio. “Só depois de muitos anos que comecei a me sentir parte de Dahab. Então me vi como objeto, como um outro local entre os demais. Mudei o método de encarar a realidade deles, que passou a ser um pouco minha também”.

“A foto do barbeiro… Nossa, tem mil motivos pra essa foto ter sido tirada lá. E mais umas mil referências por trás dela”, diz ele sobre a sua foto preferida de todas. “Você só corta o cabelo numa cidade onde vive. É um hábito de um local. Tem um simbolismo por trás dessa foto. Algo meio, “agora você é um de nós”. Nela o Mohamed está segurando o flash, lá atrás. Fiz questão de colocá-lo em quadro. Conhecia o cara havia anos; foi comigo para todos os cantos. Minha máquina também aparece do outro lado. Nessa foto ela é tão personagem quanto o resto”.

O fluxo turístico passou a aumentar com o tempo, mas em 2011, com o advento da Primavera Árabe, entrou em cena uma segunda fase do colapso turístico local. A coisa até ensaiou uma melhorada logo em seguida, mas com o golpe militar contra Morsi em 2013, a situação desandou de vez. Depois disso, Pedro nunca mais voltou. “Uma pena, dá saudades. Quando andava na rua, todo mundo me reconhecia. Eu e a minha câmera”.

“Tem umas maluquices por lá também. Maluquices? Não sei se essa é uma boa palavra”, diz com aquela famosa dificuldade humana de diferenciar a beleza da novidade, a maluquice da beleza, a novidade da maluquice. “Tem, por exemplo, uns barcos com fundo de vidro para quem não quer mergulhar”.

Pedro diz orgulhoso que sempre está em contato com seus amigos egípcios. “Sou muito próximo deles”, complementa dando a entender que só o contato, por si só, não é sinônimo de muita coisa. “Lá quando alguém te convida para algo é muito difícil dizer não. Eu desenvolvi esse carinho pelo egípcio. Eles têm um jeito deles. Sabe o jeito brasileiro? Que você reconhece rápido e tal? Então, também existe o jeito egípcio. Mais que isso, o jeito deles lá de Dahab. Na minha cabeça Dahab não é exatamente parte do Egito. É uma coisa diferente, separada”.

E é assim, sentindo-se separado do lugar para o qual não conseguiu mais voltar, que Pedro conclui, em meio a uma pergunta que provavelmente já ouvira mil vezes de muitas pessoas diferentes: por que diabos você continuou voltando? “Tenho vontade de viver mais quando estou lá. Como eu ponho isso em uma foto? Não sei. Só sei que era o que estava tentando fazer”.

Texto: Matheus Machado

Pedro Arieta

Pedro Arieta

Fotógrafo brasileiro vivendo em Nova York há dez anos. Fotografa moda e vai pro Egito quando dá tempo. Gosta de mergulhar, Parliament Funkadelic e sua cachorra Madalena.