Infame

“Am I a Good Man?”. A Pergunta que Surgiu Assim Mesmo, em Inglês

"O inferno está cheio de boas intenções. O inferno são os outros. E nunca você mesmo?".

Por Felippe Cordeiro |  11 de abril de 2017

Acordei. Não como em todas as manhãs, nenhuma é igual a outra. Há dias em que desperto com mais ânimo, em outras com uma preguiça não merecida de uma noite bem dormida ou vezes em que aparento não ter aberto os olhos. Dessa vez, em particular e peculiar, despertei de sonhos esquecidos com uma pergunta palpitando feito enxaqueca pós-etilíca-tabagista: Am I a good man? Sim, em inglês mesmo. O idioma não importa, abri os olhos certa vez com um período todo em alemão que me perseguiu por dois dias inteiros. O francês pouco incomoda, mas quando aparece é terrível, não tanto quanto o espanhol – carregado de palavras sujas ou maldizeres. D’us é poliglota.

Acordei. Com “Am I good man?” e repeti para mim mesmo. Nos últimos tempos isso tem me perturbado mais do que a ansiedade, eu tentando analisar as minhas boas e más ações, daquelas não premeditadas, as quais nunca pensei ter um efeito bom ou ruim nas pessoas. O resultado, a consequência. Quando percebi havia adentrado nessa questão existencialista de como pessoas nos levam para um rumo da vida, não importando o quão planejado estamos. Isso se deve aos nossos impulsos. A princípio isso nada tem a ver com a pergunta perseguidora. Conquanto: tem. Se uma pessoa pode influenciar nas minhas decisões e planos, porque eu não teria o mesmo efeito prematuro ou tardio?

Levantei. Levantar é diferente de acordar. Você desperta, abre os olhos, vira para um lado, vira o outro, e sente como se não houvesse deslocamento entre um e outro. Levantar exige mexer as pernas, encostar o dedão e os demais dedos em sequência no chão. Espreguiçar e coçar alguma parte do corpo: olhos, costas, braços, rosto. Mesmo depois de todo esse ritual, “Am I a good man?” ainda estava aqui. A coceira não levou embora.

Conversei. E conversar quer dizer falar e escutar, escutar e falar. Pouco importam nossas intenções no mundo, com as pessoas e com nós mesmos. As boas ações podem ser más para os outros e ficamos com a pergunta na cabeça: “Am I a good man?”, “O que eu fiz de errado?”, e depois, “Devia ter falado isso?”, “Foi certo o que eu fiz?”.

Pensei. Dizem: “pense duas vezes antes de falar algo”, “pense duas vezes antes de fazer algo”. Pense quantas vezes for necessário, mas o impulso pode ser mais forte que o pensamento, do que a represália. Em tempos modernos, verborrágicos e velozes, nos esquecemos de pensar tantas vezes e quando pensamos entramos em um ciclo pequeno de autosabotagem e deixemos que as coisas aconteçam naturalmente.

Porém. Pensar em demasia cria minhocas – nunca entendi essa expressão – na cabeça. Ou seja, é apenas algo da sua cabeça. Essa oficina de ócio pronta para ocupar o que há de sadio e sábio nas sinapses.

(O inferno está cheio de boas intenções. O inferno são os outros. E nunca você mesmo? Are we good men?)

Saí de casa. Não como um Zé a caminho da padaria para comprar cigarros e nunca mais retornar. Saí de casa para enxergar além do meu universo particular. OK, isso é meio pomposo. Dentro do meu estado particular. Meu bairro particular. Minha rua particular. Minha casa.

Particular. Uma palavra medonha e necessária.

Hoje eu vi rostos familiares em desconhecidos, o que não era uma ilusão de óptica e nem mesmo saudades. Semblante de pessoas queridas ou esquecidas – daquelas que habitam o profundo inconsciente da memória, vistas uma vez no máximo ao longo da vida. Rememoro esses encontros relâmpagos e crio histórias particulares delas para mim. Mudo seus nomes, seus signos, suas origens. A memória é traiçoeira após uma par de anos, uma mentirosa construindo empatia, desprezo, cólera. Os íntimos desconhecidos com histórias peculiares, ordinárias, ambíguas. Todos fazem parte de uma lista de pequenas nuanças do cotidiano citadino: cabelos, fones de ouvido, olhos marejados, sorrisos escondidos, tementes a D’us e outros tantos onipresentes, anéis, colares, tatuagens, medos, amores, idiomas, dialetos, olhares perdidos à procura… Pessoas. Mulheres, homens, gêneros.

Quais farão parte da sua vida?

Felippe Cordeiro

Felippe Cordeiro

Felippe Cordeiro escreve. Entre seus trabalhos estão roteiros, crônicas e resenhas de cinema e literatura, guardanapos de restaurantes, bloco de notas e emails nunca enviados.