Tem um sentimento de insegurança e medo que aparece sempre no dia da partida. Uma das vezes que isso ocorreu, foi na saída de Vina del Mar no Chile, quando o Igor Bely e eu começávamos a mais longa das travessias: a Travessia do Pacífico.
O Bye Bye Brasil, o nosso catamaran, tinha pela proa um enorme salto até alcançarmos a Austrália. Como íamos nos adaptar à vida em um barco sem cabine durante meses ainda era um mistério. Os 17 mil quilômetros que dividem as duas porções de terra era o tamanho do meu medo e das minhas incertezas.
Eu me perguntava como o meu corpo reagiria diante de tantas noites mal dormidas praticamente ao relento. Não seria possível cruzar o maior oceano da Terra sem pegar algumas tempestades, e se isso acontecesse eu não sabia se meu corpo iria aguentar.
No momento que eu abracei as pessoas que foram se despedir para começar a nossa jornada, a sensação era que eu estava em um ritual de passagem. Naquele momento eu não vivia mais no mundo conhecido e também ainda não estava no novo mundo.
Esta passagem tem para mim um significado semelhante a nascer e morrer, o movimento do eterno existir. Será que sentimos mais medo ao nascer ou ao morrer?
Neste instante o que parece antagônico se funde. Eu estava me despedindo da minha vida confortável, da vida conhecida, do lugar que imaginava que conhecia e tinha controle. Eu percebia que havia um lado que tendia a querer eternizar a bolha de “segurança”, criando um modo de vida dentro do que eu estabelecia como normal, seguro e controlável. Este impulso eu reconhecia como a minha mente.
Mas havia um outro lado muito impetuoso, que me empurrava para o abismo. Este lado queria me ver diante do novo, de frente para a tempestade, das dificuldades e principalmente colhendo aprendizados. Para ele não existia certo ou errado, fácil ou difícil, sucesso ou fracasso como conceituamos. Era a minha alma que se manifestava sem julgamento diante daquela experiência. Para a minha alma, partir trazia um sentido que o que era anterior precisava morrer para dar chance de algo novo nascer. Eu estava à procura de uma conexão interna, e para isso me desconectei do mundo como o conhecemos. Me desconectei do ruído mental, e do excesso de comunicação externa.
Ao partir deixei para trás a minha vida inteira; amor, família, amigos, reputação, minha casa, a terra firme e o que era familiar. As únicas coisas que me acompanharam foram as recordações, a minha experiência, a preparação, a minha coragem e alguma fé. Sabia que tudo isso seria testado. Mas eu me perguntava. O que eu precisava levar em uma viagem como aquela, para chegar aonde eu queria chegar? Só iria saber a resposta se escolhesse partir.
À medida que o barco começava a velejar e se afastava de terra, o cordão umbilical se desligava. Eu estava me desconectando do passado para viver somente o presente. Estávamos sós, nós e o Pacífico. Estávamos rodeados de água e silêncio. Neste primeiro dia o vento estava fraco e o barco deslizava silenciosamente deixando a terra para traz. O mundo se calou e nos deixou cada um com seus pensamentos, com as suas dúvidas e com o próprio coração. A maneira como eu ia lidar com a distância do velho mundo era uma incógnita.
O mais incrível desta história é que ela se repete a cada dia, a cada vida ou existência. A única coisa que nos impede de fazermos esta viagem com plenitude é o medo de lidarmos com o novo, o medo de nos desapegarmos daquilo que a mente cria como seguro.
Ao partir de Vina del Mar eu estava procurando uma conexão com a minha alma, eu queria voar alto. A vida a bordo de um barco te obriga a viver somente no presente, e assim fui aprendendo a valorizar as pequenas coisas. Me sentia feliz ao comer uma laranja, vendo um por de Sol, sentindo uma rajada de vento acelerar o barco, descansando o corpo cansado durante as longas noites, sentindo a solidariedade do meu amigo, observando o voo de um pássaro, tomando água ou simplesmente desfrutando a chegada de uma chuva. Foram meses até alcançarmos a costa da Austrália, e depois de velejarmos 17 mil quilômetros o que valeu a pena foi perceber cheguei mais amigo do meu companheiro, do que quando partimos do Chile. Foi uma linda experiência de conexão.
Alguns anos antes vivi uma experiência maravilhosa de conexão com índios Ianomâmis. Tudo aconteceu quando navegávamos pela floresta amazônica venezuelana.
No final da tarde chegamos a uma aldeia Ianomâmi. Eu tive dificuldade para encostar o barco, pois as árvores debruçadas sobre a beira do rio impediam a passagem do mastro do meu barco.
E eu fiquei ali pensando o que fazer. De repente, alguns índios subiram lepidamente na árvore com facões e começaram a desbastar alguns galhos para providenciar uma passagem para o mastro. Foi o primeiro sinal de que éramos bem-vindos.
Essa tribo, formada por índios de apenas sete famílias que habitavam uma única oca gigante, ao contrário da outra, não falava nada além do Ianomâmi. Só nos restou então a comunicação por meio de gestos. Anoitecia. Passado pouco tempo, eles nos deram as costas e sumiram dentro da oca, sem nenhuma cerimônia.
Ficamos sem saber o que fazer, pois não fomos convidados para conhecer a oca. Marcus foi para o barco dormir, e Duncan, Roberto e eu ficamos ali à porta da oca, procurando perscrutar o que se passava lá dentro. Decidimos sentar perto da porta e, como cachorros, fomos ganhando terreno, arrastando a bunda cada vez mais para o interior da oca. Finalmente, lá dentro, vi que cada núcleo de família se reunia em volta de uma pequena fogueira e todos se encontravam deitados nas redes presas a estacas de madeira. Bem perto de nós estavam o cacique, sua esposa e as crianças. Ao lado dele, o pajé, bem velho.
Ficamos ali estáticos. Roberto me cochichou: “Essa cena que estamos presenciando poderia estar acontecendo há dois mil anos, pois de lá para cá eles não mudaram nada”. Na mesma hora pensei: entramos numa máquina do tempo – o efeito era o mesmo.
A única luz da oca vinha do fogo, que iluminava as faces avermelhadas dos índios, dando ao ambiente um aspecto primitivo e acolhedor. A fumaça das fogueiras ajudava a espantar os mosquitos, mas, por outro lado, dificultava a respiração.
O pajé levantou-se e se aproximou de nós. Trazia na mão uma gamela de madeira com algum tipo de raiz, que era o que eles estavam comendo, e nos ofereceu.
Provei e achei horrível, mas fiz cara de quem gostou.
Fiquei ali pensando em mostrar-lhes algo que valesse a pena. Sempre tenho a sensação de que nós achamos mais graça neles do que eles em nós. Fui ao barco pegar o walkman, para eles ouvirem música. Eu não levava mais que dez fitas cassete, e revolvia meu pensamento a respeito da música que pudesse agradar-lhes. Lembrei-me do Milton Nascimento, que considero um dos poucos músicos que fazem uma música universal, absolutamente contundente e compreensível a qualquer ser deste planeta.
Entrei na oca empolgado com o aparelho na mão e no ponto certo da música Sentinela, que começa com um canto gregoriano belíssimo, seguido de Nana Caymmi, com uma voz sublime. Finalmente, o Milton, que sempre me emocionou, cantando com a voz mais linda deste mundo. Concordo com a Elis Regina: “Se Deus cantasse, teria a voz do Milton”.
Liguei o walkman e entreguei-o ao cacique. Primeiro, coloquei os fones no meu ouvido para mostrar-lhe o procedimento. Tirei-os e, cuidadosamente, coloquei-os no ouvido dele. Esperei. Vi assomar-lhe uma expressão que vai ficar marcada para sempre na minha memória: parecia que algo resplandecente havia nascido dentro dele. Imagine uma pessoa que nunca sonhou ver um aparelho daquele, sentir a música dentro dela…Ele ficou sorrindo, e todos, muito intrigados, sem saber o que lhe sucedia.
Alguns segundos depois ele tirou os fones e passou-os ao pajé, que também foi tomado pela mesma bem-aventurança. Do pajé o aparelho passou para a mulher do cacique, e de mão em mão a música foi preenchendo o corpo daqueles seres tão doces.
Finalmente, duas meninas, as últimas da fila, vieram devolver-nos o walkman e, como retribuição, cantaram uma linda música Ianomâmi. Emocionados, aplaudimos as meninas. Todos nos acompanharam nos aplausos – nunca soubemos se o aplauso era uma prática comum entre eles.
Roberto disse que ia retribuir a música e se levantou. Como ele morou alguns anos na Espanha durante a adolescência, cantou uma música, em espanhol, que trazia alguma lembrança do seu passado. Assim que ele encerrou sua apresentação, todos aplaudiram entusiasticamente.
Por alguns segundos reinou o silêncio, até que outras duas jovens se aproximaram de nós para cantar outra música. Sempre curtinhas, as músicas parecem quase uma declamação, um rap ianomâmi. Novamente todos aplaudiram.
Bem, sobrou eu, o mais desafinado. Arrisquei-me cantar Beijo partido, de Toninho Horta, que é dificílima de entoar, mas uma das poucas músicas de que nunca me esqueci. Cantei, e com certeza aquela era a única plateia deste planeta que iria me aplaudir. Acho que viajei milhares de quilômetros floresta adentro à procura de alguém que gostasse de me ver cantando.
Novamente mais duas meninas se apresentaram para nós. O festival se tornava cada vez mais animado. Então, Duncan, que fala africâner, uma das línguas oficiais da África do Sul, nos ensinou alguns refrãos para acompanhar seu canto. Agora os dois Robertos eram backing vocal. E estávamos os três de pé, em frente de índios Ianomâmi, cantando uma música em africâner. Inimaginável.
Em comunhão com nossos irmãos, sem falar uma única palavra de seu idioma, unimos os nossos cantos, as nossas emoções e os nossos corações. Aquele encontro mágico confirmou para mim o que vale a pena viver na vida, e aquela viagem estava sendo o melhor presente que pude me dar.
A última apresentação foi a mais aplaudida, e foi linda! Música da África para a Amazônia.
Era já hora de se recolher, e Linsker sugeriu que voltássemos para o barco: “Está na hora, índio não dorme tarde”.
As despedidas são sempre difíceis nessas viagens. São encontros intensos, curtos, que criam um laço de amor muito forte. O encontrar, conhecer, trocar e despedir parece um nascer e morrer. Acho que são um bom treino para o desapego.
Sempre tento descobrir o que está por trás desses rápidos encontros, o que me levou a viajar quilômetros e quilômetros para cruzar um olhar com alguém e nunca mais vê-lo. Parti com o coração tocado olhando para trás e vendo toda a comunidade acenar para nós, com expressões que ficaram para sempre dentro de mim.
Esta experiência me trouxe uma profunda compreensão a respeito da comunicação, pois não falávamos a língua deles e eles tão pouco a nossa. Encontramos uma maneira de falarmos através da música, que é a linguagem do coração. Para mim fica bem claro que toda comunicação desconectada do sentimento gera ruídos, e a prova disso é a discórdia que se instalou no nosso mundo. Achamos que falamos a mesma língua em nosso país, mas nos enganamos. Falamos o mesmo idioma, mas não a mesma linguagem. O que nos aproxima é o sentir e não apenas o pensar. Este eterno movimento de partir e chegar me conecta com a ideia de morrer e nascer. Esta conexão continua é o que talvez chamamos de eternidade.