Viver em São Paulo é contar com o anonimato. Percorrer as ruas entre desconhecidos, rostos ocupados, alheios, sempre outros.
Eu pensava assim. Eu pensaria assim se os fatos não me dissessem o contrário. Se não houvesse acontecido de eu encontrar a mesma pessoa durante semanas, várias vezes, em lugares diferentes. O Paulo, por exemplo. Não ia muito com a cara dele; por semanas, lá estava o rapaz, no metrô, na fila do cinema, andando pela rua, cruzando a esquina. Tentei buscar algum significado especial para tantos encontros; o fenômeno cessou antes que eu achasse a resposta.
Depois teve aquele outro, não lembro seu nome. Acho que era pai de santo, será por isso? O fato é que nos esbarramos ao longo de alguns meses, diversas vezes, em vários lugares. A última vez que o vi, anos depois, não me reconheceu – todos dizem que estou muito diferente. Tentei explicar quem eu era, mas ele seguiu com cara de interrogação, nenhum músculo contraído do rosto se aliviando diante das minhas tentativas de esclarecimento. Eu sou aquela que você por meses encontrou pelas ruas que deveriam ser anônimas de São Paulo, lembra? Como se esse dever não cumprido asfalto afora – o não-anonimato – tornasse dias e caminhos especiais às custas de meros esbarrões. Finalizei a conversa por desistência, meio envergonhada, chegando a questionar se o havia mesmo visto tantas vezes, tentando salvar o acaso e seus pequenos presentes do desfecho tão pouco poético. Fiquei com a questão não resolvida: por que é que algumas pessoas aparecem quase com insistência no nosso caminho, e depois simplesmente deixam de aparecer? Renda mal distribuída, dizem. Interesses comuns, dizem. Um pouco de cada, sim. Mas há um elemento que escapa a estas explicações e que mesmo meus dias mais céticos não conseguem encobrir.
Eu percorria uma mesma rota à pé, da minha casa à terapia, todas as tardes de quarta. Era muito raro encontrar alguém no caminho, quase inteiro pela avenida Paulista. Numa das vezes, encontrei seis pessoas. Seis. O primeiro já no portão de casa, um vizinho. Até aí, nada de extraordinário. Cruzando a rua, uma amiga de infância me grita de dentro do carro. Chegando à Paulista, outro amigo; depois uma colega de trabalho, um antigo caso e uma amiga da minha irmã. O que significava aquilo?
Marés, pensei, numa esquina. Deve ser maré alta. Tão possível, tão plausível quanto a baixa. Ao invés de ondas, do mar que se expande, as pessoas aparecendo na minha frente, por influência da lua, ou de seja lá que outra força impossível de se ver. Simples como água.
Imagino que as marés na vida de cada pessoa aconteçam em momentos diferentes, obedecendo a uma lógica oculta, e que cada pessoa tenha a sua hora de encher ou vazar. Porque se todos os mares de encontros casuais ficassem cheios ao mesmo tempo, daria um trabalho enorme ao acaso. Parte dessa lógica, e de sua graça, é justamente o fato de não podermos controlá-la. Quantas vezes quis encontrar alguém pela cidade, a pessoa por quem estava apaixonada, e tanto a carregava no meu pensamento que tinha a constante sensação de um encontro iminente que nunca se cumpria? Um dia, outro dia, até forçando o acaso, levando meus passos para perto da região da vida daquela pessoa, semanas, e nada, nenhum encontro. Maré baixa. Para os apaixonados, para quem a cidade inteira tem um dono que não toma posse nunca do espaço que é seu, é sempre maré baixa. E quantas vezes fui presenteada com encontros para os quais eu não estava minimamente preparada, aquela saída rápida até a farmácia, chinelo e cabelo bagunçado e, levantando a cabeça, pronto, lá está a pessoa que eu tanto queria ver? Quando a gente menos espera, dizem; eu diria que a maré alta vem quando quer, sem ter nem a certeza de que poderá ser recebida a contento. Mas assim é a vida, não? Passa um turbilhão e depois ficamos nos perguntando se era aquilo mesmo. Era. E já passou.
Fico imaginando como seria brincar de deus. Quando quero tanto um encontro que não acontece, penso na possibilidade de haver alguém capaz de olhar de cima, de nos ver caminhando pelas ruas, minúsculos, mas com objetivos, anseios e afetos, e nos fazer rumar para a esquina tal no exato instante em que meu fulando a estará dobrando. Uma parada diante da banca de jornal daqui, um farol de pedestres aberto dali e pronto, o esbarrão se dá, presente do tempo. Ou não. Bastaria, para um deus brincalhão, olhar de cima, mirar todos os encontros possíveis mas não acontecidos, por questão de cinco metros adiante ou trinta segundos atrás; bastaria isso para, de longe, aquecer o coração divino do tempo com a beleza do desencontro, que nos concede todos os dias a paz da maré vazia. Porque não encontrar nos delega possibilidades e esperanças eternas, há amanhã, há depois de amanhã; mantém o caminho aberto dos sonhos, e não o mais endurecido da realidade. São mágicos, os encontros; mas o motor do mundo – concluí, naquela mesma esquina – é, afinal de contas, o desencontro.