“Há até orações a santos que o Papa desconhece e nunca foram canonizados, como a oração de S. Gurmim, boa para a dor de calos, e a de S. Puiúna, infalível nas nevralgias. Os homens vivem no mistério das palavras conciliadoras“. (“A Alma Encantadora das Ruas”, João do Rio, publicado em 1908).
Ano retrasado li um texto do jornalista Sérgio Augusto em que ele narrava o seu sentimento de luto depois do fechamento da épica livraria Leonardo Da Vinci, no Rio de Janeiro (reaberta desde setembro último, para a alegria dos cariocas). Referindo-se às várias lições aprendidas nos livros que ali leu ou comprou, concluía que aquele estabelecimento havia sido a sua Sorbonne, em referência à tradicional universidade parisiense.
Muita gente têm a sua própria Sorbonne de estimação. Instituições de ensino paralelo. Rádios-pirata estranhas ao tradicional binômio família-escola, responsáveis pela transmissão de boa parte do que faz de nós pessoas singulares. Engana-se quem pensa que essas Sorbonnes sejam necessariamente feitas de tijolos. Há Sorbonnes sem parede, Sorbonnes de carne e osso, até mesmo Sorbonnes metafísicas e intocáveis pelas mãos humanas.
A minha grande Sorbonne nasceu voando solta pelo ar, depois passou a ser armazenada em vinil, em seguida virou plástico, para enfim ganhar forma de arquivo digital. Exatamente, virei isso aqui que eu sou por causa da música. Os discos dos meus pais tiveram lá a sua importância nesse processo: Beatles, Sinatra, The Mamas & The Papas, Nat King Cole. Mas o ritual de passagem se deu mesmo dentro das Lojas Americanas de um shopping de São Paulo, nos idos de 1992, muito embora eu adoraria contar-lhes uma versão mais charmosa dessa história. Meu irmão caminhou até mim com o CD “Blood, Sugar, Sex, Magik” dos Red Hot Chili Peppers e falou: é esse aqui ó, vou pedir pra mamãe comprar. Ele não tinha a menor ideia de que, naquele momento, sem querer, estava rasgando minha existência entre antes daquilo e depois daquilo.
Os 73 minutos daquele álbum não foram suficientes. O que se viu em seguida não foi um mergulho, foi um afogamento. Um novo mundo construído com decibéis veio a reboque. CDs e fitas cassetes gravadas por amigos mais velhos, meus gurus musicais. Programas de rádio no meio da madrugada, revistas e livros especializados. Espeluncas de shows em bairros distantes, aos quais eu ia escondido. Camisetas e pôsteres de bandas. Até um dia perceber que as pessoas ao meu redor nunca tinham sequer ouvido falar da grande maioria daqueles artistas que cantavam ao meu coração de maneira tão especial. No mundo deles, não existia Bad Brains, Iggy Pop nem Black Sabbath.
Bom, a ficha caiu e eu fiquei lá sozinho com as minhas bandas favoritas. Esse foi o meu primeiro gole de despertencimento na vida. Ali compreendi que, em termos de padrão arquitetônico, o mundo não é um abrigo hippie no qual todos convivem juntinhos num mesmo espaço, mas sim um casarão dividido em milhares de quartos e onde alguns cômodos são mais cheios que os outros.
Não foi difícil concluir que o meu quarto era do time dos mais vazios. Nesses quartos vazios, talvez pela abundância de espaço desocupado, gostam de viver as coisas ocultas. E não me refiro àquele oculto paranormal, esotérico, mágico, do tipo que revela-se a alguns poucos escolhidos. Estou falando do oculto arroz-com-feijão, óbvio, literal, gritante, que está aí dando sopa, estatelado para qualquer idiota que cruze o seu caminho. Nessa espécie de ocultismo capenga, que nunca fez morto nenhum renascer e nem para curar resfriado serve, não se estuda o além, seus milagres, divindades e fantasmas; estuda-se os desprezados, os esquecidos, esse objeto milenar do pouco-caso humano. Um microcosmo onde aglomeram-se empoeiradas não só as músicas da minha Sorbonne, mas livros, filmes, opiniões e tantas outras coisas para as quais o planeta está sistematicamente pouco se lixando. Por trás de cada uma dessas coisas existe uma pessoa. Um músico, um pensador, um desconhecido. Alguém que disse, pensou ou fez algo e acabou falando somente com a sua sombra, pelo simples fato de estar num quarto vazio. Não foi ouvido, foi lançado ao underground, amaldiçoado a despertencer pelos séculos dos séculos.
Essa é a lição mais valiosa que aprendi na minha Sorbonne musical: o carinho pelo submundo, por esse ocultismo próprio do mundo dos vivos, ocupado por essa gente esquecida e que acostumou-se a falar sozinha. Por causa deles aprendi a gostar do silêncio do quarto vazio, de onde é possível ouvir baixinho o barulho vindo dos quartos cheios, lá onde reinam as coisas notórias. Ocultismo que não é nem do bem nem do mal, nem de Deus nem do diabo, nem branco nem preto. Ocultismo meia-boca, coisa de quem é fluente na língua dos sussurros, o idioma oficial da delinquência.