Infame

A Incrível Capacidade de Não Saber Ler

"O Brasil ostenta 13 milhões de analfabetos e uma taxa exorbitante de jovens que completam 17 anos de escolaridade em situações privilegiadas, e ainda assim, são incapazes de compreender de forma contextualizada um artigo de jornal".

Por Bianca Ventura |  13 de março de 2017

Em educação a leitura é um tópico formidável. A condição social que um indivíduo adquire ao transitar de forma competente pelo mundo das letras é um divisor de águas: impacta diretamente no desenvolvimento de outras aprendizagens e beneficia a autonomia das pessoas, favorecendo o pleno exercício de seus direitos. Assim, para além das óbvias consequências sobre o universo do trabalho, os índices de alfabetização atravessam as dimensões da cultura e da política, configurando uma relação estreita com o desenvolvimento social.

Contudo, embora o volume de indivíduos com acesso à escola cresça e o tempo de escolaridade da população mundial venha aumentando significativamente, a funcionalidade da alfabetização se mantém como um resultado de difícil alcance para as políticas públicas.   O conceito de letramento surgiu na pedagogia moderna para evidenciar que a compreensão e produção de sentido nas práticas de leitura e escrita envolvem aspectos muito mais complexos do que a decodificação prevista na alfabetização. Quem escreve, a quem se destina o texto e sob qual finalidade são elementos-chave para a atribuição de sentido a uma dada reunião de palavras.

Temos nos esforçado muito para ensinar a ler de verdade nas últimas três décadas e inúmeros estudos e teorias ganharam as ruas e as escolas nesse tempo. Às ciências humanas foram somados os saberes sobre o funcionamento da máquina cerebral, e o ritmo tornou-se passível de cura, permitindo a estimulação precoce de bebês, o direcionamento dos jovens distraídos e o alívio químico para os agitados em geral.

Não é de hoje que o domínio dos processos e do comportamento humano figura como fantasia no imaginário da educação. Vem do século XIX, quando o alcance institucional da escola progredia no mesmo passo que a difusão dos ideais higienistas. Nas últimas décadas, o  movimento de migração da educação do setor público para o privado fez crescer tais expectativas de controle nas escolas e derivou, entre outras modas, no monitoramento online da performance dos professores por câmeras de vídeo. Se nossas certezas estão protegidas por pisos emborrachados nos parquinhos e pelos índices seguros de aprovação nos vestibulares de marca, é possível imaginar como os efeitos desse fenômeno de consumo retornam à sala de aula?

Efeito Hawthorne é uma expressão cunhada para explicar o modo como o comportamento humano se altera quando observado. Refere-se a uma experiência realizada em 1927 sobre os impactos da iluminação na produtividade de funcionários de uma fábrica nos EUA. Independentemente da variação de luz aplicada, todos os grupos se tornaram mais produtivos ao longo dos 5 anos de estudo, levando os pesquisadores à constatação de que era a atenção recebida com a pesquisa, e não a intensidade da luz, o fator de sucesso do experimento.  

De forma análoga, os saberes que circulam sobre um dado objeto ou fenômeno repercutem na representação social que fazemos dele. Felizmente há uma morosidade na pedagogia que funciona como resistência necessária às inovações sugeridas pelo facebook, pela tv e nas bancas de jornais para as escolas. Quando os leitores buscam referências para a educação do futuro em textos que privilegiam o alcance numérico das manchetes, temos uma equação perigosa em andamento. Nós, que deixamos a escola há alguns anos, precisamos ainda aprender a ler o mundo ao vivo identificando o contexto de produção – e de venda, dessas informações.

O Brasil ostenta 13 milhões de analfabetos e uma taxa exorbitante de jovens que completam 17 anos de escolaridade em situações privilegiadas, e ainda assim, são incapazes de compreender de forma contextualizada um artigo de jornal. Embora sejam fenômenos distintos, podem ser consideradas faces de uma mesma moeda que tolhe de modo cruel a emancipação dos novos sujeitos e sua atuação crítica em nossa sociedade.

Saber ler torna-se uma incrível capacidade nesse mundo. Ler as pessoas e as coisas conectadas ao seu tempo. Ler as fontes que contam tais histórias, ler o modo como as histórias se apresentam, como uma ideia é transformada em fato. Ler desdobramentos de ações não descritos. Ler, ao invés de decodificar e reproduzir. Ler o que está por trás da produção de uma imagem atraente, e da reportagem que dita as 5 escolas mais legais, inovadoras ou mais bem sucedidas do mundo.

À lá Hawthorne, o viés do nosso olhar segue moldando os resultados que produzimos. Assumir que as descobertas mais recentes trarão sempre os melhores caminhos  fará de nós em pouco tempo uma massa bem informada de leigos desavisados. O saber científico é produzido  com sobriedade, mas se dissipa por canais subterrâneos na velocidade de um click.

 

Bianca Ventura

Bianca Ventura

Bianca Ventura cogitou ser atriz, arqueóloga e historiadora no final da adolescência. Escolheu psicologia e há 15 anos trabalha conectando pessoas e possibilidades dentro da Educação.