Quarta-feira. Cinzas. Absolutamente tudo que habita a casa explode em pequenas partículas oníricas. Gliter. Tudo tudo, tudo estava virado. E brilha, para ademais de um respiro alegórico extasiado e ainda extasiante. Branca, uma tela anseia palavras pretas. E o verbo acorda ainda em cores, espreguiçando centopeia, minha rouca onomatopeia.
O carnaval me parece, então, possível definir: um espasmo. Contraindo involuntariamente nossas carnes culturais mais metafísicas, metafóricas, translúcidas. Explodindo células da alquimia convulsiva da interconexão entre os diversos sentidos populares. Para quem não conhece ou não entende o carnaval; taí! É isso. Acontece apenas quando há entrega profana do poder sagrado dos tambores aos povos. E quando amalgamam por fluídos mágicos, a alma e os pés da gente com os poros da pele enrugada, escancarada, da rua. Ritual de poder. Consagração da gente que é da rua, e da rua que é da gente.
E é assim que as linhas retas das minhas cidades mais duras, vão, então – e só no carnaval – cedendo, suaves, à sedução de um afeto suado das transgentes, que transborda em alegorias e fantasias, as risadas mais tenras, as salivas mais nobres, e os temperos mais óbvios, qual milho travestindo pipoca em óleo quente.
A Via S2 começa no centro da cidade. Passa pelo Conic, por trás da Catedral e do Museu da República, desce pelas costas do Congresso, e termina na Avenida L2. Quem é de Brasília localizou. E seguramente já passou por ali. Certamente sobre rodas, e sem, provavelmente, saber seu nome. Ou possivelmente, chamando-a de “rua das putas”, apelido pelo qual ficou conhecida, sobre o que não cabe aqui discorrer. Ao lado dela (paralela em sentido norte), está uma das ruas mais conhecidas do Brasil. Já vista, supostamente, ao menos uma vez, por boa parte das brasileiras e brasileiros (ainda que por foto ou tv): a Esplanada dos Ministérios. Que começa na exata coordenada central da cidade, onde se cruzam o norte-sul com o leste-oeste, findando também na L2, e abrigando uma marca notória: a Praça dos Três Poderes. Talvez coubesse melhor a ela o apelido dado à S2, por razão que dispensa aqui explicação. Mas é chamada apenas, e assim conhecida por todo mundo, a via do poder, Esplanada.
Sábado de carnaval, subindo ineditamente a pés a S2, o povo que seguia para a concentração do bloco, ia fotografando (com ou sem câmera) grafites, pichações e panfletos que expressam artística mente, sensações às quais também pertenço, e anseios que conformam também os meus sentidos. Era gente tão diversa e tão comum, e tão divina mente Diva. Uma gente, assim como eu, de verdade. Umas pessoas comuns, filhas de deus nessa canoa furada remando contra a maré, sem luxo nem lixo. Uma gente feita de mulheres super-homem e homens maravilha. De amores pra dar, pra vender, ou pra guardar, ou pra simplesmente desfilar. De trabalho e de preguiça, e de canto e de paz e de guerra. De conta pra pagar, de menino pra criar, de quizumba pra arrumar, de questão pra resolver, de emprego pra arranjar, de roupa pra lavar. De serviço pra terminar. De sim ou não pra dizer. De resposta pra esperar. De página pra ler ou escrever, de lata pra catar. De saudade pra matar ou só chorar. De patrão pra enfrentar. De vida pra mudar, de vida pra seguir, de vida pra viver. Gente grande desvalida, de felicidades pequeninas que, entre virtude e vício, faz pão e faz comício, e faz gol, entre pão e poesia. Gente que se completa enchendo de alegria a praça e o poeta. Gente de mundo pra fazer. Tão própria e singular. Tão todo.
Dali daquele fim de tarde, do colo quente daquela ciranda vívida daquele ethos eufórico e ávido, avisto, longe, a paralela emudecida. Enxergo uma Esplanada surda. O verde e o branco dos blocos onde um dia essa mesma gente esteve em plena apoteose, esmaecidos por uma bruma apática que sobrepaira num patético desajeito antipático. Não reconheço, transfigurada, aquela Avenida onde suamos tantos carnavais. Sem deixar pra trás nenhuma ala, sem deixar de cantar nenhuma estrofe do samba. Aquela Avenida por onde desfilaram as mais sábias porta-bandeiras, carregando as mais pesadas e justas bandeiras, de mãos dadas com os mais valentes mestre-salas. Aquela Avenida onde fomos todas e todos, a um só tempo, passistas e a própria bateria.
Domingo. Quaresma. Aquela Avenida, chamem-na hoje como quiserem. Só não mais a via do poder. Porque esse poder, que nos foi mais uma vez tomado de assalto, mudou de endereço. A letra do nosso enredo consagra o poder à gente. A rua, afinal, é da gente, que é, afinal, da rua. O carnaval, afinal, é certo, é cíclico e regressa. Para desgosto daqueles que não toleram, não reconhecem, e menosprezam o poder da rua, que jamais provaram o gosto da gente.