“Não espere que o teatro satisfaça os hábitos de seu público, mas mude-os.”
Bertolt Brecht
Começar um artigo sobre Teatro com uma citação do dramaturgo alemão Bertolt Brecht já dá uma pista ao leitor do que vem por aqui. Numa época tão conturbada em nosso país, às vésperas de uma eleição cuja tensão se compara às primeiras eleições diretas para presidente, falar sobre cultura exige um posicionamento claro em relação às políticas públicas.
Existem mil maneiras de se produzir um espetáculo teatral, passando por leis de incentivo, editais federais, estaduais e municipais, por instituições como SESC, SESI e Itaú Cultural, até o investimento privado (caso raro, como veremos a seguir). Então, como analisar este mercado de produção teatral em São Paulo com tantas variantes?
Vamos pensar que teatro é feito para alguém. Sendo um produto cultural, é indissociável de uma realidade social. É, por definição, público, onde indivíduos da sociedade se encontram para interagir com uma obra. Sem público, não há teatro, independente se o ingresso é acessível ou não, ou se acontece nos centros metropolitanos ou nas periferias. Há que se ter público, porque é público (mesmo sendo privado). Aí vem a pergunta: temos pessoas que consomem teatro na cidade de São Paulo?
O ato de consumir não é, necessariamente, o ato de comprar, mas sim o de utilizar, de se apropriar. Então, podemos dizer que um espetáculo gratuito ao público, por exemplo, pode ser consumido. Vemos que o consumo de bens culturais está associado então ao acesso democrático e também à formação cultural deste indivíduo, que deve estar exposto a esta manifestação artística desde a educação infantil, para que se forme o hábito de consumo de bens culturais (sejam eles gratuitos ou não).
Entretanto, na sociedade atual, em que os bens duráveis (celulares, tablets, computadores, televisão, entre outros) são cada vez mais valorizados, popularizados e consumidos, os bens culturais tornam-se artigos exclusivos de uma população que tem acesso e/ou conhecimento de sua existência. Uma coisa faz falta somente se é vivenciada ou conhecida, não é mesmo? Além disso, o acesso e frequência aos espaços dificulta ainda mais este consumo que depende de segurança pública, transporte urbano e manutenção do espaço público.
“Há alguns anos, o crescimento das cidades (…) tem buscado engolir toda e qualquer manifestação de convivência coletiva, seja em parques, seja em ruas abertas para as pessoas, seja em praças, seja em espaços que privilegiam o encontro coletivo, como teatros.”, diz Carlos Gomes, Coordenador do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural.
Por isso, voltamos ao ponto em que Cultura e Sociedade são esferas intrínsecas e que andam de mãos dadas, uma afetando a outra. Não é à toa, também, que os serviços online e de streaming (Netflix, entre outros) cresceram vertiginosamente nos últimos anos. O cidadão não precisa sair de casa, tendo a conveniência e segurança de sua sala de estar para usufruir de uma obra artística audiovisual (porque mesmo teatro filmado não é teatro), ao invés de ter garantido o seu direito de ir e vir.
O potencial público de teatro acaba por ficar em casa, em sua maioria, com seu pouco dinheiro, sua segurança, seus gadgets e sem o conhecimento da existência e fruição de espetáculos teatrais.
Em relação à falta de segurança, o próprio Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, publicou uma carta aberta sendo contrário a mais um corte orçamentário proposto pela MP 841 do Governo Temer, que criou o Fundo Nacional de Segurança Pública e reduziu o recolhimento de verba para a Cultura através da Loteria Federal: “As atividades culturais e criativas representam atualmente 2,64% do PIB, geram um milhão de empregos formais, reúnem 200 mil empresas e instituições e cresceram entre 2012 e 2016 a uma taxa média anual de 9,1%, apesar da recessão. Estão, portanto, entre os setores que mais contribuem para o desenvolvimento do país. O investimento público nesta área retorna multiplicado, na forma de aumento da arrecadação tributária. A cultura já faz muito e pode fazer ainda mais pela superação da barbárie cotidiana em nossas cidades. Trata-se de uma poderosa arma contra a criminalidade e a violência, por seu elevado potencial de geração de renda, emprego, identidade e pertencimento. Reduzir os recursos da política cultural é na verdade um incentivo à criminalidade, não o oposto. Mais cultura significa menos violência e mais desenvolvimento.”
Mas existe a possibilidade de ser um produto teatral um investimento, um negócio, como qualquer outro? No qual se tem investidores e que, depois da peça estreada, recolhe-se o lucro da venda de ingressos? Segundo Vitor Souza, da Ativo Cultural, “(…) nós não temos um mercado de teatro que possa ser chamado de mercado, principalmente porque as obras culturais são focadas na produção via leis, editais e patrocínios e pouco focadas via público (…) é como se você tivesse uma padaria, em que você tem dinheiro para fazer pão mas não tivesse ninguém para comer”. Ou seja, uma peça de teatro não consegue sobreviver, depois de estreada, somente de bilheteria.
Além disto, mesmo quando um espetáculo consegue um patrocínio ou um edital público para a sua produção, a circulação e permanência desta “arte da repetição” fica comprometida a uma estreia com curta temporada (geralmente 6 semanas). Temos pouquíssimos editais públicos, e menos ainda para a circulação. Como não se sobrevive da venda de ingressos, muitos espetáculos acabam desaparecendo ou vivendo com ajuda de aparelhos, com cachês cada vez mais baixos (a famosa lei de oferta e procura, ainda mais com a enorme quantidade de teatros sendo fechados em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro). As empresas que patrocinam artes cênicas preferem estréias, espetáculos inéditos, e não promover ações que incentivem a circulação. Já os teatros em shopping centers, por exemplo, geralmente garantem uma programação focada nas comédias, stand ups, celebridades e musicais, o que é uma parcela muito limitada da produção teatral de São Paulo e, geralmente, cobram aluguéis mais caros das produções.
“O mercado de teatro em São Paulo tem se tornado cada vez mais difícil para fazer teatro-dramaturgia. O musical tem dominado o cenário e as empresas estão interessadas em patrocinar somente o gênero musical, tirando exceções (como a Vivo e a Porto Seguro que apostam ainda no “teatro de dramaturgia”). E muitas vezes os musicais são os ditos “enlatados”, vindos de fora, e acabamos perdendo nossa identidade”, segundo a visão do produtor teatral Carlos Mamberti.
O mercado de teatro em São Paulo está longe de ser mercado também porque sua função primordial não é a de gerar lucro. Esta é apenas uma das suas possibilidades. E em São Paulo, especificamente neste exato momento, luta-se para garantir um mínimo de investimento público já adquirido (como a Lei de Fomento ao Teatro). Num cenário ideal, poderia existir espaço para todos os tipos de teatro, com as mais diversas formas de produção, onde os artistas pudessem viver dignamente e investidores recolherem seus lucros. Entretanto, todas elas, desde as mais democráticas até os musicais com ingressos a preços mais “salgados”, dependem de uma coisa em comum: público. Ser ou não ser um mercado, a esta altura, não é a principal questão. Se não houver, urgentemente, um plano de educação para garantir o acesso a esta linguagem artística, em todas as camadas sociais, não teremos teatro. Enquanto estivermos mais ocupados em “ter” do que “ser”, não consumiremos experiências. Não encontraremos inspiração para imaginarmos e recriarmos outras realidades. Não compartilharemos como um coletivo, presente somente naquele momento, da possibilidade de desenvolvermos nossas habilidades sensoriais (pois o teatro é tridimensional), ampliando nossa capacidade de percepção do mundo, das pessoas, de nós mesmos. Da possibilidade de sermos criativos. E de encontrarmos outras saídas. De mudarmos a nossa realidade de fato.