“Ainda vai chegar o dia em que o homem terá que lutar contra o barulho de forma tão inexorável quanto combateu a cólera e a peste negra”.
- Silêncio e Cultura
A frase acima foi dita em 1905 pelo bacteriologista Robert Koch, ganhador do Prêmio Nobel. Mais de 100 anos depois, estratégias típicas anti-barulho, como protetores auriculares e fones de ouvido com tecnologia “noise cancellation”, podem fazer pouco por nós, já que não nos ajudam a nos reconectar com e a dar ouvidos à terra. A terra está falando. Mais do que nunca, precisamos nos apaixonar novamente pela terra, e o silêncio é um dos nossos pontos de encontro.
Gordon Hempton afirmou que o “silêncio não é a ausência de algo, mas a presença de tudo”. Através dele podemos desenvolver o potencial da quietude, e a quietude é a ponte entre a mente, o corpo e a alma. O silêncio não se comunica conosco por meio de linguagem convencional, mas com sentimentos interiores, sensações, pensamentos e emoções. O silêncio nos dá a oportunidade para que a “comida” (interior) cozinhe. A qualidade do silêncio proporciona o calor constante que dá voz ao potencial de algo. E se nós continuarmos a ligar e desligar esse aquecimento, as coisas jamais acontecerão. O silêncio é uma panela de pressão. Tudo nele cozinha muito mais rápido.
Contudo, o silêncio não é visto como algo positivo. Infelizmente, “sozinho” e “solitário” tornaram-se sinônimos; pior ainda, talvez “quieto” e “entediado” sejam comumente tratados como causa e consequência. Sob uma perspectiva cultural e individual, o crescimento da industrialização levou a uma idolatria da personalidade extrovertida. Nós de repente ficamos fascinados por pessoas que eram atrevidas e divertidas, que sabiam como se autopromover, que falavam bem em público e sentiam-se confortáveis em interações sociais. E essa necessidade de saber como falar e o que falar colocou uma pressão nos introvertidos para que falassem e agissem de modo não natural, para que sempre evitassem o silêncio e puxassem conversas em eventos, mesmo quando não têm vontade de falar ou estar com outras pessoas. Culturalmente, nós não somos estimulados a ter momentos de silêncio. Mas quando nós encaramos o silêncio como uma potencialidade, como a sabedoria oriental o vê, então ele passa a representar a preparação para algo único.
- Silêncio e História
Segundo o estudo do panteão romano, havia uma deusa chamada Angerona. Acredita-se que ela simbolizava, no contexto do paganismo (espiritualidade baseada na natureza), o poder do silêncio. Representada por uma estátua cujo dedo aponta para seus lábios fechados, impunha o silêncio como uma ordem.
Ela também era vista como uma deusa que aliviava os homens de dores e tristeza, uma deusa protetora de Roma, apesar de não ser claro, entre os acadêmicos, exatamente como deveríamos compreender essa representação de poder.
O silêncio também estava presente durante rituais sagrados, denominados Mistérios de Eleusis, na Grécia antiga. Os iniciantes eram obrigados a manter silêncio absoluto em relação àquilo que viram ou ouviram durante suas iniciações. Aristóteles, no seu livro “On Philosophy”, afirma que “iniciantes não precisam aprender algo, mas, ao invés disso, devem estar dispostos a algo, a uma experiência e a submeter-se a algo”. Assim, os cultos pagãos, acima mencionados, preocupavam-se em dar atenção aos ritos de uma forma fenomenológica e holística, em que as palavras, doutrinas, intelecto e lógica eram tidos como tão importantes quanto a experiência em si, conduzida essencialmente em silêncio inefável, já que tais palavras não conseguiam descrever propriamente todas as emoções ali envolvidas.
- Silêncio e Bem-Estar
Hoje em dia, mais de 2.000 anos depois dos escritos de Aristóteles, nós como uma sociedade “desenvolvida” tivemos um enorme “progresso” tecnológico em diferentes indústrias. Mas isso ocorreu a um custo, por exemplo, no setor de transportes. Após andarmos descalços passamos a contar com animais como meios de locomoção, utilizando charretes e carruagens. Das charretes e carruagens desenvolvemos os trens a vapor, automóveis, aviões, até chegarmos nas espaçonaves e drones. O progresso veio acompanhado de um efeito colateral: um aumento substancial na poluição sonora. Após esse progresso tecnológico, a sociedade passou por um grande êxodo das áreas rurais para as áreas urbanas. Temos milhões e milhões de pessoas vivendo hoje em áreas cada vez mais concentradas e menores, algo que tem aumentado ainda mais o impacto do barulho excessivo.
Mas em termos de bem-estar, temos evidências sobre como o silêncio afeta o ser humano de modo positivo. Em uma pesquisa não-publicada escrita pelo psicólogo-ambiental Dr. Craig Zimring, sugere-se que barulho eleva a pressão sanguínea, aumenta os batimentos cardíacos e quebra os padrões de sono de pacientes em unidades neonatais, possivelmente num nível suficiente que impeça seu desenvolvimento e contribua para perdas auditivas em bebês prematuros. Mas boas notícias descobertas em outra pesquisa (Bernardi, Porta, Sleight 2006) mostram que o efeito oposto pode ocorrer quando há a presença do silêncio, aliviando estresse e tensão. Eles descobriram que “dois minutos de silêncio são mais relaxantes do que ouvir a música relaxante, com base nas alterações de pressão e circulação sanguínea no cérebro”. Da mesma forma, em um estudo de 2013 em camundongos, publicado na revista “Brain, Structure, and Function”, comparou-se os efeitos de diferentes tipos de barulhos e o silêncio nos cérebros de roedores. Pesquisadores concluíram que duas horas de silêncio por dia levavam ao desenvolvimento de novas células em uma região essencial do cérebro chamada hipocampo, que está associada com habilidades como aprendizado, memória e emoção. Enquanto ainda são preliminares, tais descobertas sugerem que o silêncio poderia ser terapêutico para condições como a depressão e o mal de Alzheimer, males ligados a uma taxa baixa de regeneração de células no hipocampo.
- Silêncio é Sagrado
“O silêncio é a fonte de grande força”— Lao Tzu
A natureza se manifesta a nós todos os dias por meio de sons lindos. O primeiro canto dos pássaros ao amanhecer, o barulho das folhas nas árvores, o zumbido de um inseto, o sussurrar do vento nas montanhas, a quietude da noite e a correnteza de um rio. Mas o que dizer das ações silenciosas que acontecem constantemente na natureza? Com certeza elas devem ter algum espaço na nossa admiração e reflexão. Por exemplo, as grandes forças cósmicas, das quais nós dependemos: luz, crescimento orgânico, o desabrochar de uma flor, a gravidade, a eletricidade, marés, a rotação da Terra, o movimento de placas tectônicas. Bem como os elementos, o ar, a terra, o fogo e a água, quando estão equilibrados e parados, sem movimento, são silenciosos ou ao menos nós não podemos ouvi-los.
Buda, por exemplo, era um defensor do silêncio, não como uma resposta a questões metafísicas ou de outra ordem, mas como uma alternativa à conversa fiada que tantas vezes ocorre socialmente. Já foi dito que quando encontrou a Iluminação, manteve-se quieto, sem proferir uma única palavra. Por uma semana ele apenas sorria. A mitologia diz que Buda teve uma conversa com anjos que questionaram o porquê de ele estar em silêncio. Buda respondeu: “Como você pode transmitir uma coisa tão íntima, algo tão pessoal? As palavras não podem fazê-lo”. Muitos escritos no passado já declararam: “as palavras terminam onde a verdade começa”.
Buda acreditava que o silêncio era a fonte da vida, e também a cura para doenças. Quando alguém está triste, ela abaixa a cabeça e fica quieta. Se alguém está bravo, ela pede para ficar sozinha, ou grita bastante e em seguida fica em silêncio. Quando envergonhada, as bochechas de uma pessoa ficam coradas, ela deseja ir para um outro lugar e mantem-se em silêncio. Algumas pessoas sábias ficam quietas e pessoas confrontadas com ignorância e ódio também ficam quietas. Quando te pedem para provar algo que está além de qualquer prova, o remédio é o silêncio.
Estar em silêncio e sozinho não significa solidão, isolamento ou passividade. Gandhi a certa altura passou a rejeitar o conceito de “resistência passiva”, que ele associava com fraqueza, preferindo satyagraha, o termo que ele próprio criou para significar “firmeza na busca pela verdade”.
Como o termo satyagraha indica, a passividade de Gandhi não era nem um pouco uma fraqueza. Significava focar em um objetivo final e recusar-se a perder energia com esforços desnecessários. Com seu autocontrole, Gandhi disse:
“Eu desenvolvi naturalmente o hábito de refrear meus pensamentos. Uma palavra impensada dificilmente já escapou pela minha boca ou caneta. A experiência me ensinou que o silêncio é parte da disciplina espiritual de um devoto da verdade. Há tanta gente tão impaciente para falar. Toda essa falação não pode ser para o benefício do mundo. É tanta perda de tempo. Minha timidez tem sido, na verdade, meu escudo e defensora. Fez-me crescer. Ajudou-me no meu discernimento da verdade”.
Além disso, Gandhi costumava passar um dia por semana em silêncio, sem falar com ninguém. Acreditava que abster-se de falar trazia paz interior e tornava-o um melhor ouvinte. Essa influência veio de princípios hindus do mauna (silêncio) e shanti (paz). Nesses dias ele se comunicava com os demais escrevendo no papel.
O silêncio tem um sentido especial, a ser expresso de forma diferente durante:
- A intimidade única entre uma mãe e seu filho depois de uma noite de amamentação, quando o bebê está satisfeito, quase pegando no sono, e seus pais estão ali com ele, juntamente ao silêncio e consigo mesmos.
- Os sonhos, essa curiosa e silenciosa experiência que pode ser vista como algo tão concreto quanto a vida real e sobre os quais ainda estamos começando a aprender.
- Em reações surpreendentes que ocorrem quando nós encaramos de frente o mundo “natural” da forma mais crua possível, nas quais palavras ou até mesmo reações emocionais, pausam ou até mesmo recuam, já que elas não são mais necessárias.
- Quando um trovão não é apenas um trovão, mas um trovão que quebra o silêncio e contrasta com ele. Acreditamos que o trovão em si rompe com o silêncio, mas a sensação do trovão também é a sensação do silêncio que se foi.
- Chuvas de meteoros numa noite clara, o vácuo do espaço, cadeias de montanhas, etc.
- O silêncio do nosso corpo, que trabalha na maioria das vezes sem fazer barulho, apesar da quantidade extraordinária de processos acontecendo dentro de nós.
- O processo de pensamento, que é silencioso.
- A nossa morte, durante a qual “ouviremos” o silêncio, sem a limitação do tempo-espaço, sem o ontem e o amanhã.
- O movimento das estações, quando podemos sentir o inverno trazendo silêncio à paisagem. Adentramos um período de reflexões, em que escuridão e morte são predominantes. Em áreas de invernos rigorosos, muitos pássaros migram para regiões mais quentes para achar comida, como néctar e insetos, por uma questão de sobrevivência. Com esse tipo de migração, o ambiente se torna cada vez mais quieto e silencioso. Quando a escuridão começa a perder a força e a primavera chega, os pássaros retornam com toda a sua peculiar e diversa linguagem cheia de vida e sons vibrantes.
- Reflexões
Acredito que o silêncio aproxima as pessoas, porque apenas aqueles que estão confortáveis uns com os outros podem sentar juntos sem falar nada. Este é um grande paradoxo. Como Margaret Lee Runbeck já disse: “o silêncio forma as conversas reais entre amigos. Não são as palavras que contam, mas sim a desnecessidade de falar qualquer coisa”. O silêncio alimenta nossa natureza, e nos dá o potencial para conhecermos e sermos quem realmente somos.
Nos últimos anos tenho sentido a necessidade de mais silêncio na minha vida. Quando estou quieto, estou escutando. A maioria de nós esqueceu como escutar, há sempre algo acontecendo lá no fundo das nossas mentes, julgamentos ou uma necessidade de dar sua opinião. Tem sido mais difícil achar pessoas que estão apenas ouvindo e assimilando o que a outra pessoa está tentando dizer. Há um potencial tremendo no silêncio, na abertura da nossa mente para um novo mundo. Há um monte de informação flutuando por aí e que nos passa despercebida porque nossas mentes habituaram-se a filtrar e ouvir apenas aquilo com que concordamos e queremos. Dessa forma, nós não perdemos somente muitas oportunidades para ajudar os outros ao ouvi-los de verdade, mas também oportunidades de ajudar a nós mesmos, de mudar nossa forma de ver o mundo, de ver o mundo sob uma perspectiva diferente, de nos transformamos em uma pessoa melhor e mais profunda.