Infame

O Mito do Pensamento Independente

"A gente acha que entende as causas da Segunda Guerra Mundial, o porquê da nossa esposa ter nos largado pelo carteiro, de onde os humanos vieram, como as economias funcionam, etc. Mas quando nosso conhecimento é testado, a conclusão acachapante é que nós sequer entendemos todos esses conceitos".

Por Charles Chu |  12 de março de 2018

“O maior problema na comunicação é a ilusão de que ela ocorreu”. George Bernard Shaw

Sempre que queremos convencer alguém de algo, gostamos de dizer: “Hey, por que você não pensa por você mesmo?”.

Mas a gente realmente sabe o que queremos dizer quando falamos sobre pensamento independente? E seria o pensamento independente algo realmente possível?

Para pensar a respeito disso, vamos viajar um pouco até o passado em que viviam nossos ancestrais…

Este aqui é você:

Apesar de você parecer bem alimentado, você está com muita, muita fome. Toda semana, você não teve nada para comer além de algumas frutinhas. Hoje é o Dia de Ação de Graças e as suas crianças estão esperando esfomeadas para você voltar ao seu lar-caverna.

Você não quer decepcionar seus filhos, então você decide caçar um desses caras aqui:

Hmm, mas é meio grande. Meu Deus, essas presas parecem afiadas. Não tem como você fazê-lo sozinho.

Então você liga para o seu primo Oot, que leva jeito com a lança nas mãos. Aí você visita a Tia Oog, apesar da idade, é uma talentosa artesã de lanças. Em seguida você liga para o Ood, o Oof, o Ooh e todos os outros membros da sua família.

Você não poderia cumprir a missão sozinho, mas juntos, vocês conseguem! Vocês derrotam o mamute, cortam os pedaços, levam-nos de volta até a caverna e começam a cozinhá-los no fogo. Mmm, delícia. Seus filhos estão sorrindo e com as barrigas roncando. Sua esposa te dá uma piscadinha e abre um sorriso reluzente.

E todo mundo na caverna vive feliz para sempre.

Wow, esse foi um terrível exemplo.

Inteligência é Superestimada

Nós não temos uma ideia clara sobre como nossos ancestrais caçavam, mas, seja lá como o faziam, está claro que eles não caçavam sozinhos.

Isso significa que, sob uma perspectiva evolutiva, a inteligência individual pode ter tido uma importância bem menor do que nós achamos.

Em The Knowledge Illusion: Why We Never Think Alone (“A Ilusão do Conhecimento: Porque Nós Nunca Pensamos Sozinhos”), os cientistas da cognição Sloman e Fernbach escrevem:

“Claramente, a inteligência individual é útil para caçar. É necessário muita inteligência para construir uma arma eficiente, para prever como um animal vai reagir quando ameaçado, para matá-lo e para armazenar sua carne, e assim por diante. Mas nada disso chega perto de ser suficiente para atacar vários bisões em uma única caçada, isso sem falar em animais maiores como o mamute. Nenhum ser poderia fazê-lo sozinho. O que tornou tudo isso possível foi a divisão do trabalho cognitivo. Cada membro da comunidade desenvolveu uma habilidade que contribuísse para atingir os objetivos da sua comunidade”.

Desde o começo, nós evoluímos para resolver problemas complexos não independentemente mas dependentemente, dentro de um grupo.

Tomemos esse café que estou bebendo, como exemplo.

Eu não sei quase nada a respeito dele. Não sei como colher grãos de café, como empacotá-los ou enviá-los a outro país, como preservar seu sabor, como tostá-los ou moê-los, e assim por diante.

Apesar disso, dou um jeito de pedir e beber café todas manhãs, e eu nunca, jamais falhei ao fazê-lo.

Isso ilustra um conceito que os autores chamam de “a ilusão do conhecimento”.

A Ilusão do Conhecimento

Você sabe usar o banheiro?

Espero que sim.

Mas você sabe como um banheiro funciona? Eu com certeza não sei. Tudo que sei é que faço lá minhas necessidades, pressiona a descarga e shhhhhhh: está feito.

A gente acha que entende as causas da Segunda Guerra Mundial, o porquê da nossa esposa ter nos largado pelo carteiro, de onde os humanos vieram, como as economias funcionam, etc. Mas quando nosso conhecimento é testado, a conclusão acachapante é que nós sequer entendemos todos esses conceitos.

O que está acontecendo aqui?

Sloman e Fernbach argumentam que boa parte do nosso “conhecimento” não é conhecimento no sentido de compreender como as coisas funcionam, mas sim uma crença abstrata – chame de fé, se quiser – de que alguém em algum lugar compreende.

“A mente humana não é como um computador, desenhado para conter pedaços de informações. A mente é um flexível resolvedor de problemas que evoluiu para extrair apenas as informações mais úteis para guiar decisões em novas situações. Consequentemente, as pessoas arquivam muita pouca informação sobre o mundo nas suas cabeças. Nesse sentido, as pessoas são como as abelhas e a sociedade como uma colméia: Nossa inteligência não está em cérebros individuais mas na mente coletiva. Para funcionar, as pessoas contam não apenas com conhecimento armazenado em seus crânios mas também no conhecimento armazenado em outros lugares: nos nossos corpos, no ambiente e especialmente nos outros indivíduos. Quando você coloca tudo isso junto, o pensamento humano é incrivelmente impressionante. Mas é o produto de uma comunidade, não de um indivíduo sozinho”.

Acredito que a Terra seja redonda e que o aquecimento global esteja acontecendo. Mas se você pedir para eu explicar o porquê disso, o melhor que posso fazer é resmungar alguma coisa sobre gravidade e o efeito estufa.

Então o meu “conhecimento” neste caso consiste em uma espécie de fé em outras pessoas: cientistas, gente inteligente com PhD, veteranos ou qualquer tipo de pessoa que, para mim, saiba essas coisas que eu não sei.

A linha que separa o que sabemos (o que está “dentro” das nossas cabeças) e o que nós não sabemos mas acreditamos (o que está “fora” das nossas cabeças) não é muito clara. Por causa disso, nós superestimamos drasticamente nosso conhecimento, produzindo uma ilusão:

“Na medida em que o pensamento individual e o pensamento grupal são tão interconectados, é difícil definir as fronteiras. Se você pedir para alguém determinar a percentagem da sua contribuição para um projeto em grupo, as pessoas fazem uso dessas incertezas para dar a si próprias mais crédito do que merecem. A estimativa total excede 100%! Essa tendência a superestimar as contribuições pode levar a conflito, especialmente quando leva à desvalorização das contribuições de outros membros do grupo”.

OK, OK. Então muito do nosso pensamento é social e sabemos menos do que achamos.

Contudo, isso não significa que todo pensamento independente seja impossível.

Ou significa?

O Sonho da Independência

Em How to Think (“Como Pensar”), um dos meus livros favoritos deste ano, o filósofo Alan Jacobs escreve:

“Pensar de forma independente de outros humanos é impossível, e se fosse possível seria indesejável. Pensar é necessariamente, completamente e maravilhosamente social. Tudo que você pensa é uma resposta àquilo que outra pessoa pensou e disse”.

Essa afirmação soou absurda inicialmente – não importa quão importantes sejam as interações sociais, parece-me que ainda somos capazes de ter pensamentos originais, ser críticos, inventar novas tecnologias, etc.

Não é isso, porém, o que Jacob quis dizer, na minha opinião.

Peguemos o filósofo Descartes, por exemplo.

De acordo com aquela história que nos ensinaram na escola, aprendemos que ele mergulhou nos seus estudos e passou a questionar tudo que sempre havia acreditado sobre si mesmo.

Ele duvidou dos amigos, das suas posses, das suas memórias, etc. até que achasse algo que não pudesse negar: seus pensamentos.

Daí a expressão cogito ergo sum: Penso, logo existo.

Quando você ouve essa história, parece que Descartes chegou à sua conclusão sozinho.

Mas estamos esquecendo de algo.

Também devemos nos perguntar a razão pela qual Descartes decidiu duvidar de si mesmo. Com quais problemas filosóficos ele estava lutando? Por que ele decidiu questionar a si mesmo? Quando começamos a nos fazer essas perguntas, torna-se claro que tudo que Descartes fez estava socialmente situado.

Por exemplo, sua ideia de duvidar de si mesmo era inspirada em exercícios espirituais cristãos: (da sua biografia, Descartes: A Biography):

“Os exercícios espirituais praticados por Descartes foram concebidos por São Inácio como uma forma de quebrar padrões habituais de pensamento, e de redirecionar a atenção do fiel para episódios na vida da Cristo e as implicações morais e religiosas que decorressem deles. Descartes parece ter entendido o principal obstáculo para praticar a metafísica de forma similar”.

Descartes estudava pensadores anteriores a ele, dedicou-se a problemas propostos por outros, correspondeu-se com seus contemporâneos, etc. Tudo que o levou até o momento da sua foi totalmente, maravilhosamente e inegavelmente social.

Dizer que o pensamento independente é impossível não significa dizer que somos incapazes de ter ideias originais. Na verdade, significa as ideias que temos estão sempre relacionadas a ideias ou problemas gerados por outros seres humanos.

Afinal, sem essa rede social de ideias, tradições e crenças que vão bem longe, nós ainda pareceríamos muito com este cara: (…)

Agora, um ponto prático.

Se o nosso pensamento é muito mais social do que pensamos, o que devemos fazer a respeito disso?

Uma Comunidade Pensante

Nós ocidentais somos individualistas e há uma tendência que nos incentiva a desconfiar de grupos.

É verdade que pessoas em grupos podem estuprar, pilhar, assassinar e fazer todo tipo de coisas que jamais fariam sozinhos. Mas isso não significa que todos os grupos sejam ruins.

Por exemplo, no seu livro The True Believer (“O Verdadeiro Crente”) o filósofo Eric Hoffer menciona que a identidade grupal é uma importante parte de resistir a coerções:

A capacidade de resistir à coerção decorre parcialmente da identificação de um indivíduo com um grupo. As pessoas que melhor se mantiveram nos campos de concentração nazistas foram aquelas que sentiam-se membras de um partido (os comunistas), uma igreja (pregadores e ministros) ou um grupo muito próximo de conterrâneos. Os individualistas, independentemente da sua nacionalidade, caíram”.

Alan Jacobs, mais uma vez em How to Think, diferencia entre um coletivo – onde participantes acreditam nas mesmas coisas e podem ser substituídos uns pelos outros – e grupos organizados pelo que ele chama de membresia.

Referenciando C. S. Lewis, Jacobs diz:

“O quão uma membresia verdadeira em um corpo difere da inclusão em um coletivo de pessoas pode ser visto na estrutura de uma família. O avô, os pais, o filho mais velho, a criança, o cachorro e o gato são membros verdadeiros (no sentido orgânico) precisamente porque eles não são membros ou unidades de uma classe homogênea. Eles não são substituíveis entre si. Cada pessoa é quase uma espécie em si mesma… Se você retirar algum desses membros, você não simplesmente reduziu o tamanho da família. Você realizou um dano à sua estrutura”.

Então, para aqueles de nós mais interessados em pensar de forma mais clara, a coisa mais importante pode não ser o retiro solitário ou identificar pessoas que pensem de forma parecida.

Na verdade, deveríamos nos associar com pessoas que têm crenças diferentes sobre política, arte, economia e a vida mas que também carregam os mesmos valores – valores como o respeito pelos outros, a disposição de criticar (mas não rebaixar) e uma sede franca pela verdade.

No passado, essas condições foram reunidas em determinados lugares e períodos históricos de modo a criar alguns dos mais belas eras de florescimento que já vivemos.

 

Charles Chu

Charles Chu

Charles Chu é escritor nos Estados Unidos.