Em um trecho da música Ballad of a Thin Man, Bob Dylan canta:
“Você tenta bastante
Mas não entende
Exatamente o que irá dizer
Quando chegar em casa
Porque algo está acontecendo aqui
Mas você não sabe o que é”.
Algo está acontecendo, mas não sei o que é, Maria, tenho ouvido das minhas amigas, a maioria muito mais perto dos quarenta do que dos trinta. Algo incomoda, aquilo que era bom já não é mais, aquele emprego que a tornou uma mulher bem-sucedida e independente já não supre mais, falta sintonia com aqueles velhos amigos, o casamento passou de quente para morno e de morno para frio, a profissão escolhida aos 17 anos parece ter sido um erro. A casa cheia parece vazia, o caminho virou um abismo e as asas não batem mais o suficiente para alcançar o outro lado. Alma que parece vestir uma cinta que um dia já lhe ficou frouxa, mas agora aperta. E sufoca.
Algo acontece, mas ninguém sabe explicar o que é. Mas que bom que há incômodos. Já imaginou passar uma existência toda pensando igual, agindo da mesma maneira, com os mesmos conceitos, o mesmo emprego, somente os mesmos amigos, as mesmas roupas, as mesmas preocupações? Nas festas de final do ano, meu irmão comentou que as celebrações não eram mais as mesmas, que a família estava diferente, nem melhor e nem pior, mas diferente. Que bom, pensei mais uma vez. Não poderia mesmo ser igual. Pessoas morreram, outras nasceram, as que estão vivas cresceram, envelheceram, mudaram de cidade, de país, de marido, de mulher. Que bom que todos estão vivendo.
No ótimo livro Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã, o autor Yuval Noah Harari escreve sobre algumas possibilidades de como e com o que os humanos investirão seu tempo, dinheiro e sabedoria no próximo século. Um dos pontos levantados é que possivelmente não mediremos esforços para alcançar a longevidade, a divindade e a felicidade. Porque como disse Kate Richards, ninguém quer morrer, mas também ninguém quer envelhecer e essa conta não fecha nunca. A ciência se debruçaria, então, em como vivermos até os 140 anos de maneira saudável, jovem e útil à sociedade. Caso tenhamos sucesso na empreitada, como resolver nossos desejos e revoluções mais internas? Se hoje, aos 40, já sentimos a necessidade de nos reinventar, podemos então começar a nos preparar para uma nova crise de identidade aos 70 e talvez depois aos 110 anos.
Aos 70 anos, com uma vida inteira pela frente e provavelmente já no segundo ou terceiro casamento nos divorciaríamos mais uma vez e talvez planejássemos mais filhos. E por que não uma nova graduação? Como viver mais metade da minha vida fazendo exatamente a mesma coisa? Aquele concurso público que passei aos 23 anos porque desejava estabilidade foi pura imaturidade. Aos 80 anos, sim, estou madura o suficiente para fazer boas escolhas. Bom, talvez eu possa esperar mais dez anos. Ou melhor não.
A minha crise de identidade chegou aos 32 anos, com o retorno um pouco atrasado de Saturno, que quando dá uma volta completa em torno do Sol – são necessários 29 anos para isso – também dá uma volta e um nó na sua vida e te desestrutura até que você diga: ok, Saturno, você venceu, vou mudar tudo e agora você já pode parar de me atormentar. Lembro do conselho de uma amiga à época, quando eu pensava que era só sentar e esperar que o tsunami voltasse a ser marola: Maria, não deixe Saturno ir embora assim, sem fazer as mudanças necessárias. A reflexão durou bem uns dois anos, que mais pareceram dez. Inconstantes, infinitos, doloridos, sofridos. Tinha alguma coisa acontecendo comigo, mas eu não sabia o que era.
E foi nesse caos emocional, com os nervos parecendo um novelo de lã sendo chutado por um gato arisco, que a meditação entrou na minha vida e nunca mais saiu. Foi com ela que o novelo se transformou num cachecol e o caminho de pedra virou passeio no parque. Eu sabia que tinha alguma coisa acontecendo, mas continuava sem saber o que era, no entanto os problemas não eram mais problemas, eram apenas parte do percurso existencial. Respirei fundo, peguei Saturno pela mão e saímos juntos por aí. E as mudanças começaram a brotar pelo chão, todas de uma vez. O limbo tinha virado jardim.
Para as minhas amigas eu aconselho: meditem, meditem, meditem. Não consigo, é difícil, não tem outro jeito não? Tem, sempre tem. Mas difícil sempre será. Essa foi a maneira que eu encontrei, mas cabe a cada um de nós descobrir como não se afogar na areia movediça da matrix que nos consome e do sistema que nos engole. Pelo menos tem algo acontecendo, mesmo que você não saiba o que é.
Só não deixe tudo isso passar em vão, se reinvente, tente, respire fundo, chore quando for preciso, pois uma coisa é certa: bons tempos virão e sem nem perceber a resposta para o que é que estava acontecendo ali vai surgir bem diante dos seus olhos, como um quebra-cabeça de mil peças que você demorou muito para entender qual parte se encaixava com a outra e, mesmo diante de tanto desencaixe, ficou pronto. Agora é só emoldurar, pendurar na parede e apreciar. Se for ao som de Bob Dylan rolando na sala, melhor ainda.