Infame

Rock and Roll Society: Reflexões de uma Pista VIP

"Estamos maravilhados e indignados. Tanta desigualdade no mundo. Mulheres mortas apenas pelo fato de serem mulheres. Negros mortos apenas pela cor de suas peles. Senhor, tende piedade de nós. Ainda bem que o vocalista nos conta que parte dos R$1.200,00 que pagamos pelo ingresso na pista VIP é destinada a um fundo de combate à pobreza na África. Alguém tem de fazer alguma coisa".

Por Ana Marta Cattani |  03 de dezembro de 2017

Com algum esforço, conseguimos enxergar quatro silhuetas que se movem sobre o palco. Parou de chover. Prendemos a respiração e estendemos nossos celulares para o ar. Ao primeiro toque das baquetas, explodimos. Somos flashes e êxtase. Canhões de luzes. Homens de jaquetas e calças pretas tocam e cantam. Lindooos! Cem mil pessoas também vestidas de preto gritam e pulam. Um mar de cabeleiras lisas desgrenhadas e mãos balançando.

A tela gigante se acende e palavras tiradas do célebre discurso de Marthin Luther King, “I have a dream”, deslizam coloridas: “sonho”, “promessa”, “verdade”, “igualdade”. Que bom, tá friozinho, não é sempre que podemos usar nossas jaquetas de couro num país tropical. O vocalista conclama o público para cantar com ele. Nesse instante, somos arrebatados pela certeza de que o sonho não morreu e decidimos comprar um cachorro quente. Essa salsicha é de boa qualidade? Coisa de primeira, querem com mostarda e catchup? Purê de batata também? O vendedor negro estende o troco. Aplausos.

Durante duas horas somos um só, tiramos fotos e nos abraçamos. Podemos cantar sem sotaque todas as músicas, graças às aulas particulares de inglês. Olá, Z., até você por aqui? E aí, X., firmeza? No telão, surgem recortados contra a escuridão um campo de refugiados e crianças esquálidas. Nossa, cara, esse show tá demais! Tomei umas dez cervejas! Ruínas de uma cidade destruída e mais crianças segurando fuzis. Te vejo amanhã no escritório então! E será que a gente vai conseguir acordar? Gargalhadas. Close em uma jovem muçulmana chorando. Tão triste, é preciso fazer algo, mas o quê? Outro rapaz negro carregando um isopor cheio de cervejas passa por nós, vamos tomar mais uma?, bem gelada, por favor.

O show está quase acabando e a última música é dedicada às mulheres. O refrão ecoa pelo estádio: “a melhor parte de mim é você”. Então é isso? As mulheres são uma parte deles, a eterna costela de Adão? A música é bonita e nos embala, esquecemos as mulheres e entoamos o refrão junto com mais uma cerveja, vendida pela moça negra de trancinhas rastafári. O telão agora desfila imagens de mulheres célebres, de Rosa Parks a Michelle Obama, de Madre Teresa a Taís Araújo, de Malala a Conceição Evaristo. Solo de guitarra. O vocalista nos lembra quantas foram massacradas, desprovidas de seus direitos básicos. Solo de baixo. Solo de bateria. Aplausos.

Estamos maravilhados e indignados. Tanta desigualdade no mundo. Mulheres mortas apenas pelo fato de serem mulheres. Negros mortos apenas pela cor de suas peles. Senhor, tende piedade de nós. Ainda bem que o vocalista nos conta que parte dos R$1.200,00 que pagamos pelo ingresso na pista VIP é destinada a um fundo de combate à pobreza na África. Alguém tem de fazer alguma coisa. Aplausos. Na saída, presos num trânsito infernal, rezamos para nosso táxi não errar o caminho e se perder na favela mais próxima.

Ana Marta Cattani

Ana Marta Cattani

Ana Marta Cattani adora Snoopy, Borges, Drummond, mousse de chocolate e cheirinho de lavanda, necessariamente nessa ordem. É paulistana, mãe, esposa, advogada e apaixonada por escrever, não necessariamente nessa ordem.