Eu vejo as pessoas reclamando. Eu só vejo as pessoas reclamando. É quase um dar de ombros, um apontar de erros, parece que ninguém se acha responsável por nada que acontece em âmbito coletivo. Mas esquecemos que nós fazemos o coletivo. Então ele só pode ser produto de cada intenção, comportamento e expectativa individual que, somados, criam todos os dias a sociedade em que vivemos.
Admitir que você é co-responsável pelo trânsito, pela mudança climática e pela violência é difícil. Que você, na condição de homem hétero, é co-responsável pela disseminação de uma cultura machista que, no Brasil, aprova o assovio e, em última instância, legitima o estupro. É bem difícil. Que você, na condição de branco ou branca, é co-responsável pela disseminação de uma cultura que mantém o negro à margem da sociedade, mais próximo do crime, mais vulnerável a uma ação da polícia, mais exposto a uma injustiça. Que você, publicitário, é co-responsável pela cultura do consumo, pelo materialismo e, em última instância, pelo esgotamento dos recursos naturais, num capitalismo que você ajuda a alimentar porque mantém sua relevância. Que você, médico alopata, ajuda a manter a indústria farmacêutica poderosa, que, não podemos negar, vive da doença das pessoas.
Você já se perguntou se interessa à indústria farmacêutica que as pessoas se curem para não depender mais dela? Por que a medicina preventiva é tão pouco incentivada ou tão cara? Já pensou que você que come carne é co-responsável pelo desmatamento da Amazônia para áreas de criação de gado? Que você que pega o carro quando poderia pegar o metrô é co-responsável pela saúde das crianças que, sabemos, em São Paulo, sofrem com a poluição e têm problemas nas vias respiratórias entre 0 e 5 anos, o que já é considerado comum? É difícil admitir. A gente se sente vítima, a gente senta no carro e reclama, liga a TV e reclama, pega o elevador e reclama. Mas o pulo do gato é entender, de uma vez por todas, que somos vítimas de nós mesmos. O primeiro passo para começar uma cura é aceitar que você está doente. Em tempo: sou branca, trabalhei 15 anos como publicitária e ainda como carne, portanto não estou apontando nada muito diferente do que sou.
Nas ciências sociais a gente aprende a falar em sintomas. Como os médicos. Se você tem uma gripe, você já sabe que aquela aspirina vai curar o sintoma dela, não a origem. Quando você vai ao médico com uma dor, você está relatando um sintoma. Diante do sintoma, ele vai investigar as suas causas, para só então decidir como tratar o seu problema, que existe para além dos sintomas. A mesma coisa se aplica às ‘doenças’ sociais, aos desequilíbrios. Um menino pobre e negro que está no tráfico de drogas e que comete um assalto à mão armada não é a causa da violência contra quem sofreu o assalto. Ele é um clichê do sintoma de uma sociedade em que a população negra, proveniente da escravidão, não teve oportunidades iguais de educação, segurança e saúde. Isso contribuiu para que a maior parte da população pobre brasileira (com menos acesso a educação, a saúde, a emprego, etc) fosse de afrodescendentes.
Pode não ser sua culpa diretamente, mas sempre o será indiretamente. A gente vota. Você pode alegar que os candidatos são todos ruins, mas se eles estão lá, fomos nós que demos esse poder a eles. Você também pode alegar que a maioria da população brasileira escolhe mal. Se a maioria da população brasileira não frequenta boas escolas ou universidades para, pelo menos, conhecer seus direitos, ou por estar barganhando voto por pão, não seria o caso de começarmos a escolher apenas candidatos que investissem em educação? Em saúde? Em infraestrutura? Essas condições mínimas de dignidade, sabe? E que podem conviver com interesses econômicos de elites, só não podem ser menos importantes que eles. Política é que nem poder aquisitivo: cada pessoa escolhe onde põe seu dinheiro e pelo quê vai trocá-lo. Não existe produto que sobreviva no mercado sem uma demanda. Não existe político bom sem a demanda por boa política.
Em suma, se continuarmos a olhar para o menino negro pobre do tráfico como a ameaça, desejar a redução da maioridade penal por causa dele, ou tolerar casos como o do Diogo Cintra, sob alegação de ter herdado um medo coletivo histórico, estaremos mirando no sintoma. E estaremos mirando errado. Dedicar-se a curar os sintomas pode implicar na expansão silenciosa da doença, enquanto a gente se distrai com o que vê na superfície. E pode ser fatal. A política brasileira hoje é sintoma de uma democracia frágil. Saber disso pode te ajudar a agir sobre ela, mais do que se sentir vítima de algo maior que você.
Indo mais longe, não seria o terrorismo do Estado Islâmico resultado de décadas de guerras e humilhações que países ricos, bem armados e interessados em petróleo impuseram sobre povos que perderam terras e familiares? Então ele não é também um sintoma de um desequilíbrio que já produziu gerações de flagelados? Precisamos perceber urgentemente que não é mais o caso de um país declarando guerra a outro. Não é mais o poder bélico de uma potência que vai impedir o terrorismo porque o terrorismo não tem nem pátria. Por muito tempo miramos o sintoma. A doença se espalhou para muitos países, através de jovens fanáticos, de pátrias humilhadas, recrutados por uma ideologia anti-hegemônica, disfarçada de motivação religiosa. Literalmente uma metástase. Você pode ser um brasileiro, desse país onde não tem terremoto nem terrorismo e onde se espera morrer mesmo é de bala perdida ou fata de atendimento de saúde, estar passeando ali nas Ramblas em Barcelona e seu destino cruzar com o de um motorista de van fanático. Talvez seja meio tarde para esperar que nações deem conta desse mal ou possam responder com alguma solução. Então quem pode? Ninguém isoladamente e todos nós, ao mesmo tempo. Todos que somos testemunhas oculares e passivas da História que produziu esses fanáticos.
Seguindo o mesmo raciocínio, não seria o Brexit um sintoma do medo de quem se sente acuado diante de algumas ameaças ao status quo? Você pode sentar e lamentar. Mas você também pode enxergar que alguém ali está muito incomodado com a liberdade, a convivência como o diferente e o fim de alguma hegemonia. E se tantos alguéns se incomodaram, a ponto de votarem pela saída do Reino Unido da União Europeia, a boa notícia é que a mudança no status quo fez barulho, tem tamanho, tem boas chances de virar o jogo. Quando a gente muda o referencial, também muda nossa consciência sobre o problema. Muda nosso poder e nossa motivação para agir. Olhar para a realidade tentando identificar o que é sintoma e o que é causa é um exercício saudável de ponderação, maturidade e até de autoconhecimento.
Podemos mudar a realidade simplesmente decidindo mudar as nossas atitudes como indivíduos? Eu creio que não. Mas será possível mudar a realidade SEM MUDARMOS nossas atitudes como indivíduos? Certamente não. Se você quer ver mudança no mundo, assuma seu papel nesse balaio. Comece logo. Comece ontem. No mínimo, você vai ter mais direitos de praguejar sobre o que está errado.