Infame

Sobre uma Nova Política: Práticas Municipalistas a partir de uma Perspectiva Negra

"Por isso a classe média branca e progressista, por mais empática que se considere em relação a questões raciais, precisa também entender o quanto é privilegiada e como do alto de seus privilégios “naturalmente” ou “por afinidade” se alinha a outros brancos política, econômica e culturalmente".

Por Marcio Black |  20 de outubro de 2017

A ideologia que ignora a cor pode apoiar o racismo que nega. Com efeito, a exigência de ser indiferente à cor significa dar suporte a uma cor específica: a branca.” [Frantz Fanon]

Em 2016 fui candidato para vereador pela Rede Sustentabilidade como integrante da Bancada Ativista. E essa foi um das experiências mais potentes que tive o prazer de viver. Pelo fato de que pude olhar para a cidade que amo de um outra perspectiva. Ou por ter a oportunidade de ler quais foram as redes de apoio que construi ao longo da minha vida tanto no ativismo quanto como produtor cultural.

A primeira percepção a surgir foi de que as cidades que recebem melhor a diferença são aquelas nas quais a diferença está presente. Com isso não estou dizendo que não existam desigualdades nesses lugares e que todos os problemas sociais estão solucionados. Estou falando de gestões recentes que se esforçam para resolver essas questões por meio da criação de instâncias/plataformas que fortalecem a participação cidadã, transparência e maior controle social. Essas são as bases do municipalismo europeu contemporâneo e que podem ajudar na abertura para práticas políticas inovadoras na cidade de São Paulo.

Na proposta de novas práticas políticas que apresentamos para a cidade de São Paulo consideramos os pontos citados acima. Quanto mais as pessoas estiverem expostas a experiências diversificadas e quanto mais tiverem que dar conta de visões de mundo que contrastem, menos fechadas serão suas redes de relações ao nível do cotidiano. Dessa maneira poderemos pensar em tudo que uma cidade, a nossa cidade, pode ser. Em quais são suas verdadeiras potências. Por um lado estaremos aptos a compreender quais são as mudanças estruturais necessárias e que passam pela implementação de políticas sociais/projetos de lei. Enquanto por outro lado compreenderemos o que passa pela mudança de comportamento das pessoas e, por isso, demanda a criação e a manutenção de espaços públicos para o diálogo, para participação efetiva das pessoas e exposição das diferenças.

Para construirmos uma nova cidade, o feminismo, a inclusão da comunidade LGBT e o antirracismo precisam ser princípios fundamentais que norteiem todas qualquer prática. E a garantia de entrada dessas comunidades nos espaços de decisão política precisam ser o foco de qualquer um que acredite realmente em transformar a cidade de São Paulo. O municipalismo do Barcelona en Comú, por exemplo, prevê isso. Como eles não tem uma questão racial evidente, ou melhor, a questão racial em Barcelona está mais relacionada com políticas de integração de imigrantes, o feminismo tornou-se o foco de trabalho da coalizão. Todas as sugestões para cargos eletivos são feitas visando a eleição de mulheres. Existem homens no Barcelona en Comú? Existem, mas as mulheres estão no centro da história. A coalizão fez a leitura de que esse acesso foi negado por muito tempo e essa situação precisava mudar. Ao mesmo tempo em que só mudaria se a questão estivesse como regra maior, primeira e inegociável na constituição da coalizão e na construção de seus mandatos. E foi isso que permitiu a eleição de Ada Colau. Em resumo: o protagonismo de mulheres aparece como regra primeira e inegociável o que escancara as portas para a manifestação efetiva da diferença.

Nesse sentido o municipalismo a partir de uma perspectiva negra precisa ampliar a ideia de uma “cidade para pessoas” ou “cidade mais humana” para além da classe média branca. Deve ser parte de uma agenda progressista e que preveja um projeto político para o povo preto. Desde uma perspectiva que questione os elementos do capitalismo que garantem a manutenção do racismo estrutural e que direcione para soluções possíveis.

Resumindo: o municipalismo desde de uma perspectiva negra deve operar 1.) pela entrada de negras e negros nos espaços de decisão política, 2.) pelo entendimento de que negros e negras precisam ter estímulos paras suas capacidades empreendedoras e 3.) o reconhecimento de que o antirracismo deve ser uma regra primeira e inegociável para a gestão municipal e para empresas ou organizações que atuem no município.

A implementação dos pontos acima são necessários para que essas expressões se convertam de fato em políticas sociais para todas as pessoas que vivem na cidade de São Paulo de ponta a ponta. É preciso considerar projetos que passem pelo fomento da economia local com a manutenção de pequenos comércios familiares até o planejamento de uma cidade que atenda demandas referentes ao turismo, mas que não onerem ainda mais comunidades que sempre estiveram em sua margem. Que essas comunidades sejam incorporadas nos serviços propostos e que sejam implementados por empresas locais que não tenham apenas o lucro como principal objetivo. Como o proposto pelo Sistema B ou outros modelos de negócios sociais. Ou ainda pelo incentivo ao microcrédito para empreendedores nas periferias e exemplos de bons não faltam em nossa cidade e falaremos sobre cada um deles nas próximas colunas.

A existência da comunidade negra e a possibilidade de avançarmos cultural, econômica e politicamente é negada a todo momento. Por muito tempo fomos silenciados, apagados e por isso precisamos apostar em novas estratégias para nos integrarmos cada vez mais numa sociedade que até hoje cria muitas barreiras. Por isso a classe média branca e progressista, por mais empática que se considere em relação a questões raciais, precisa também entender o quanto é privilegiada e como do alto de seus privilégios “naturalmente” ou “por afinidade” se alinha a outros brancos política, econômica e culturalmente. E que a reversão disso aconteça quando o antirracismo se tornar uma regra primeira e inegociável em suas existências, uma vez que ainda detém os recursos, meios e alcance. Isso vale também para as universidades onde lecionam, organizações ou empresas nas quais trabalhem. Não somos vistos pelo simples fato de que negros e negras estão fora de suas redes pessoais e cotidianas.

Atualmente estamos presentes em todos os espaços por meio a.) de militância/ativismos, b.) da disputa de espaços de decisão política e de poder, c.) lideranças em ambientes de trabalho e d.) nos espaços de produção científica/acadêmica. Mas ainda é muito pouco e o que precisamos nesse momento é de pessoas dispostas a fortalecerem as iniciativas negras como participantes ativos dessa transformação pela qual a cidade precisa passar e está passando. Transformação que tem como uma de suas principais urgências a inserção de negros e negras nos espaços de decisão política.

É sobre isso que falarei mensalmente aqui na minha coluna no Infame. Pois como dizíamos durante a campanha “o futuro é nosso!”

 

Marcio Black

Marcio Black

Marcio Black é cientista político, produtor cultural e mobilizador da Minha Sampa. Em 2016 foi candidato para vereador pela Rede Sustentabilidade como integrante da Bancada Ativista.