Pensa numa cena clássica em viagens internacionais: você bate o olho na pessoa, ela bate o olho em você de volta, vocês examinam as roupas ou o sotaque com que acabaram de pedir informações para algum estranho ali ao lado, reparam no idioma do livro que carregam em mãos, no jeito que riem ou gesticulam e tudo isso junto já é suficiente para terem uma certeza: e aí cara, de onde você é no Brasil?
Não acho que a pergunta seja motivada por nacionalismo. Não acho que esteja em jogo uma vontade incontrolável de estar com o seu semelhante, seu conterrâneo; ou um anseio de saber se aquela pessoa encontrada aleatoriamente num outro país é mesmo de Uberlândia, Itacaré ou Santarém. Pelo contrário, acho que estamos falando apenas de uma questão de oportunidade. Penso que se aquele brasileiro intrometido encontrasse outra razão segura para puxar papo com qualquer outro fulano, assim o faria sem constrangimentos. Creio de verdade que não se trata de uma questão de geografia terrena, de pátria, de hino ou de sangue. É muito mais uma demanda de geografia emocional, espiritual, psicológica. Entendo-a como um gesto político, de abertura, de aceitar o peso das incertezas e estranhamentos que vêm de brinde sempre que trazemos um total estranho para dentro da nossa vida. Afinal, brasileiro acha frescura quando um gringo requer respeito ao seu “espaço pessoal”, aqueles centímetros sagrados que o separam dos demais corpos que ousam cruzar o seu caminho, ou aquele limite de informações sobre a vida de alguém depois do qual você não está mais autorizado a perguntar. Como se disséssemos: amigão, você jura mesmo que se sente assim tão mais protegido só porque dei um passo para trás ou não sei o motivo do divórcio da sua tataravó?
Fico pensando: o que estaria por trás dessa fome de transparência pessoal tupiniquim? Não consigo estabelecer uma ligação entre essa sede por perguntas e um elevado padrão ético. Também nem sei se há mesmo um interesse genuíno de conhecer aquela pessoa a quem se dirige a voz. Talvez seja só um interesse formal, primo distante da cortesia, um desejo de atender ao estereótipo de povo alegre e acolhedor, revelador de uma certa solidão mal resolvida, uma imaturidade para conviver com os silêncios incômodos do povo que acostumou-se às algazarras carnavalescas. Não sei. Deve haver uma explicação para isso, mas simplesmente não consigo negar que, seja qual for o motivo da nossa incontrolável vontade de sair perguntando a respeito da vida alheia, jaz nesse questionamento um desejo quase irrefreável de coexistir, de ler e ser lido, de encostar, seja com a ponta dos dedos ou com um olhar que gruda decidido em não desviar pelos próximos dez segundos.
Brasileiro pode ser meio brega, intrometido, mal educado ou sem noção de acordo com os padrões internacionalmente aceitos de conduta social. Também pode ser um bicho bem preconceituoso e egoísta, só para deixar claro que não compro o mito do brasileiro bonzinho. Mas pelo menos somos um povo que abre alas ao encontro. Podem dizer que, na média, somos iletrados demais para enfeitar tais encontros com grandes discussões existenciais, que falamos alto demais enquanto os outros conversam num tom polido, mas isso não desvalida aquilo que parecemos ser: pessoas dispostas a saber de onde viemos, quem somos, qual é a porcaria do nome da sua bisavó materna, onde diabos fica o colégio de freiras em você foi educado.
Gosto de pensar que, se existe alguma lição prática a ser tirada desse comportamento, ela apontaria para um mundo mais plural, em que aceita-se com mais facilidade a ideia de indivíduos que vão além dos seus espaços pessoais, seus corpos físicos ou do sigilo por trás de suas informações pessoais mais intrigantes; mundo no qual podemos compreender o que somos a partir de quem nos circunda. Um ambiente repleto de espelhos, em que somos a partir do que sabemos do outro. Uma atmosfera em que se cultiva a curiosidade interpessoal, mesmo que seja uma versão mais barata dela, ainda que rasteira e num formato alimentador de fofocas. Na nossa fome voraz por histórias, quase me sinto à vontade para dizer que esconde-se, muito bem escondido, um dos pilares da filosofia. Baixa filosofia, mas ainda assim filosoficamente válida: uma sede perguntadora sem fim, que tem proporções continentais, do tamanho do Brasil.
Cada pessoa estranha com quem cruzamos numa viagem ou no nosso dia a dia é um portal que se escancara, sem cadeado reserva, sem plano B, sem direito a retorno. No poema “Canção da Estrada Aberta”, Walt Whitman descreve lindamente isso que estou tentando dizer:
“Quem quer que me negue não me incomodará, Quem quer que me aceite ele ou ela será abençoado e me abençoará. (…) Você sabe o que é ser amado por estranhos ao passar? Você conhece a fala daqueles olhos que se viram? (…) Por que há homens e mulheres que quando estão perto de mim a luz do sol expande o meu sangue? Por que quando eles me deixam as bandeiras da minha alegria se derrubam lisas e planas? Por que há árvores sob as quais eu nunca caminho mas de onde pensamentos grandes e melodiosos descem sobre mim? (Eu acho que eles ficam lá pendurados verões e invernos naquelas árvores e sempre deixam cair frutos quando eu passo) O que é isto que eu troco tão subitamente com estranhos? Com algum motorista enquanto eu viajo sentado ao seu lado? Com algum pescador arrastando sua rede pela praia enquanto eu passo por lá e paro? O que me permite ser livre com a boa vontade de uma mulher ou um homem? O que lhes permite serem livres com a minha?”.
Vou confessar um negócio: apesar de tudo que falei até aqui, faço parte do grupo de brasileiros que não abordam outros brasileiros em viagens para saber de onde vieram. E vou além: admito já ter julgado em silêncio meus compatriotas que um dia me abordaram mundo afora com a pergunta de sempre: brasileiro de onde? Uma reação que já tentei entender algumas vezes e, num lampejo de honestidade bem dolorida, acabei identificando como uma falsa noção de superioridade, o sentimento importado de que abrir-se assim tão fácil é sinal de fraqueza, comportamento próprio do nosso complexo de vira-lata, da noção de que somos menos cool que os outros e dependemos da sua aceitação para ter valor.
Mas ao me ver empacado aqui, bem no meio do caminho entre essa admiração pela nossa simpatia e a vergonha de observá-la ganhar contornos práticos, meu desejo secreto é despir a pergunta da sua inocência e interrogar a primeira pessoa que cruzar o meu caminho: e aí, você é de onde? Não de onde no Brasil ou de onde na América ou na Europa. Mas de onde. Só isso mesmo, assim bem geral: de onde você é? De qual portal, de qual sentimento, de quais pais que te amaram ou te abusaram quando você tinha seis anos? Pois ainda não inventaram melhor forma de tentar entender uma pessoa: fazendo-lhe perguntas banais.
O que você fez para chegar até aqui? Não existe empatia sem uma pergunta dessas. O que você fez para chegar até aqui? Pergunta que estaciona o tempo e convida para sentar. O que você fez para chegar até aqui? Pergunta-abraço. Ombro amigo. Vontade de saber. Afeto filosofal. Inconveniência carinhosa. Brasilidade. Ziriguidum.
Cada pessoa vive a sua própria fábula. De onde eu vim? É uma longa história, mas no Brasil o tempo se expande. Aqui parecemos ter todo o tempo do mundo. Uma coisa já vou adiantando: você não tem a menor ideia do fiz para chegar até aqui.
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Leia aqui as partes 1 e 2 da série: “Às Vezes Queria Me Sentir Mais Brasileiro”.